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Objetos e movimentos em narrativas Tikuna/Magüta evocadas em percurso interpretativo do Museu MagütaObjects, movements and narratives evoked within an interpretive path in the Magüta Museum

Priscila Faulhaber
juin 2024

DOI : https://dx.doi.org/10.56698/cultureskairos.2137

Résumés   

Résumé

Cet article analyse les problèmes liés aux artefacts exposés au musée Magüta. Fondé alors que les organisations autochtones sont traversées par des scissions et des conflits de factions, ce lieu de culture se situe à la convergence des attentes des Tikuna/Magüta et de celles des chercheurs travaillant dans le domaine muséal. Sur la base de recherches ethnographiques avec les Tikuna/Magüta, en partant des termes qu’ils utilisent pour traduire différentes conceptions du patrimoine, on se penche sur les significations des situations dans lesquelles ces objets ont été élaborés en mettant l’accent sur le contexte rituel et sur les déplacements de sens. L’analyse est centrée sur le lieu réservé à l’isolement dans le rituel de la puberté féminine, en corrélation avec d’autres objets qui lui sont associés ; elle montre que son importance symbolique et politique influence les pratiques éducatives et muséales qui guident l’interprétation du monde des musées.

Abstract

This paper analyses problems related to exhibits on display at the Magüta Museum. Founded in the wake, the scope of indigenous movements intersected by scissions and faction struggles, it finds itself at the convergence of the interests of the Tikuna/Magüta Indians and the researchers from the museum sphere. Based on ethnographic research with the Tikuna/Magüta Indians about the terms they use to translate different conceptions of heritage, this paper focuses on signifying dimensions of the situations in which such objects have been elaborated, emphasizing the ritual context and displacements of meaning. Centered on the significance of the place of reclusion correlated to other objects in their belonging to the feminine puberty ritual and encompassing in symbolic and political terms to the educational and museum practices that orientate the interpretation of the museums’ world.

Resumo

O presente trabalho analisa problemas relacionados a artefatos expostos no Museu Magüta. Fundado no bojo de movimentos indígenas atravessados por cisões e conflitos faccionais, este local de cultura situa-se na convergência entre expectativas Tikuna/Magüta e de pesquisadores que trabalham no âmbito museal. Com base em pesquisas etnográficas com os índios Tikuna/Magüta, sobre os termos que empregam para traduzir diferentes concepções de patrimônio, consideram-se dimensões significativas das situações em que tais objetos foram elaborados, enfatizando o contexto ritual e os deslocamentos de sentido. Centra-se na significância do recinto de reclusão e correlacionando-o com outros objetos em sua pertinência ao ritual de puberdade feminina estendendo sua abrangência em termos simbólico-políticos a práticas educativas e museais que orientam a intepretação do mundo dos museus.

Index   

Index de mots-clés : patrimoine, objets rituels, anthropologie des musées, système de significations.
Index by keyword : heritage, ritual objects, anthropology of Museums, significance systems.

Texte intégral   

1Entre os objetos Tikuna/Magüta expostos no Museu Magüta em Benjamin Constant encontramos artefatos elaborados especialmente para desempenhos rituais, além dos objetos utilitários empregados em contexto comunitário na vida cotidiana (remos, cestaria, utensílios domésticos), bem como produtos artesanais destinados à venda (cestaria e esculturas em madeira), ou material textual e fotográfico, usado para esclarecer aspectos antropológicos históricos e geográficos da vida desse povo1.

2Entre os artefatos usados no ritual de puberdade feminina destaca-se o cercado de reclusão da moça nova. Transformado em objeto museológico este não é mais usado seja pelo artesão seja da comunidade local, produzido como anteparo para proteger de olhares externos a moça nele reclusa que é submetida ao ritual de puberdade feminina. Passa a ser visto como legado cultural de interesse para todos os Tikuna/Magüta, extrapolando o visualizado pelo artesão que o elaborou ou da família que o utilizou.

3Antes de tratar dos objetos de cultura e dos museus, serão expostos pressupostos teóricos com base na antropologia política voltada ao estudo dos museus que se tornam operativos para o entendimento da indianidade. Considerando a história da formação do Centro Magüta no bojo das lutas Tikuna/Magüta, serão focalizados principalmente objetos cerimoniais expostos no Museu Magüta, correlacionando-os ao contexto do ritual de puberdade feminina. Colocam-se no centro da as elaborações Tikuna/Magüta sobre a delimitação de locais de reclusão. Estas, no entanto, são aqui entendidas em termos de correlações entre forças centrífugas e centrípetas, comportando o imaginário das relações entre o interno e o externo, bem como da verticalidade e da horizontalidade. De modo que os objetos rituais aqui receberão maior destaque que os demais objetos no museu - como os de uso cotidiano ou produtos artesanais voltados à comercialização - cuja significância será mencionada ao final.

1. Contato e fricções no que toca aos Tikuna/Magüta e ao mundo dos museus

4Antes de examinarmos objetos expostos no Museu Magüta, no sentido de compreender como os significados das coisas “estão inscritos em suas formas, seus usos, suas trajetórias” (Appadurai, 1986, p. 17), cabe considerar definições que permitam clarificar a significação deste museu. Consideram-se aqui relações conflitivas ou “fricções” que emergem em museus e patrimônios (Kratz & Ibarra- Frausto, 2006). Cabe pensar o museu como um lugar que envolve processos conflitivos, envolvendo fricções identitárias no âmbito de definições sobre contato que implicam tensões e colaborações entre atores de diferentes etnias.

5James Clifford estende aos museus o termo “zonas de contato” emprestado da linguística por Marie Louise Pratt para a análise de discurso de textos de viajantes nas bordas fronteiriças da expansão colonial (Pratt 2003), Para Clifford, as coleções conformam metáforas de tais frentes de expansão. O museu antes de ser lugar de contemplação, envolve a ressonância da cultura (Greenblatt, 1991 ; Gonçalves, 2005). Entende-se aqui etnicidade como expressão de múltiplas vozes, em processos multissituados que ressoam no âmbito cultural em processos de realimentação do imaginário indígena em museus.

6Propõe-se no presente trabalho expandir a concepção de Museu no sentido de considerar como contestações e debates emergem paralelamente a forças centrípetas e centrífugas, evitando-se a assim dicotomias que contrapõem o que é intrínseco ao que é intrínseco aos museus2. Entende-se aqui que contextos museais se estendem a domínios mais amplos no âmbito de processos étnicos que envolvem relações sociais locais, regionais e nacionais (Kratz & Ibarra-Frausto, 2006, p. 2). A definição de “fricções em museus” capta, portanto, fluxos de interações que não se circunscrevem ao que ocorre dentro de espaços fechados entre quatro paredes das casas e salas de exposição, mas diz respeito a políticas e historicidades.

2. Motivações etnográficas e histórico da pesquisa

7Para dar conta de problemas que abarcam uma grande gama de temas, cabe aqui3 demarcar os objetivos a serem expostos nos limites do presente trabalho. Para entender como ressoa a cultura Tikuna/Magüta focaliza-se o recinto de reclusão da moça no ritual de puberdade feminina Tikuna/Magüta, a cerimônia mais lembrada quando se pensa nesse povo. Cabe desenvolver questões delineadas com base nas seguintes perguntas : Qual a relação entre o Museu Magüta com o patrimônio cultural para os Tikuna/Magüta com quem se interagiu no decorrer do presente projeto de pesquisa ? Pode-se associar o exame de conteúdos significativos que permitam elucidar as motivações que envolvem a elaboração e os usos em que este cercado é elaborado levando em conta as implicações e deslocamentos de sentido quando ele é exposto no âmbito museal ? Como pensar este artefato com relação à historicidade Tikuna/Magüta ? Qual a relação desse objeto com outros artefatos expostos no museu ?

8Fazendo um resumido retrospecto da pesquisa que antecede o presente texto, o interesse pelos objetos Tikuna/Magüta foi motivado pelos próprios Tikuna/Magüta, durante festa de puberdade Tikuna/Magüta presenciada no Barro Vermelho (Bunecü) em setembro 19974, na qual usavam indumentárias de entrecasca de árvore. Alguns Tikuna/Magüta ali presentes haviam visitado as coleções do Museu Goeldi e examinado objetos artefatos coletados por Curt Nimuendajú. Eles demonstraram o interesse deles nesse acervo, não propriamente para dele se reapropriar materialmente, mas para saber que seus objetos de cultura armazenados poderiam ser examinados por eles.

9Os Tikuna/Magüta são conhecedores dos procedimentos de ética de pesquisa e mostram-se muito ciosos dos usos dos estudos etnográficos entre eles. Sempre questionam qual tipo de retorno um visitante pode dar para eles. Embora em 1997 não se exigisse a formalização de compromisso nos protocolos hoje determinados em comitês de ética, sem que apresentassem exigência de devolução os objetos para eles os seus questionamentos naquela primeira visita motivaram a pesquisa no Museu Goeldi. Realizei exame complementar na coleção Tikuna/Magüta do Museu Nacional, acompanhada pela linguista Marília Facó Soares que forneceu orientação sobre as convenções estabelecidas no seu projeto de dicionarização, transmitindo os procedimentos fonológicos básicos por ela elaborados, correlacionando termos chave e contextos discursivos. Inicialmente fotografei apenas os objetos do Museu Goeldi e levei as fotos em viagens de pesquisa no Bunecü (Barro Vermelho) ano 2000. Mostrando as fotos na escola ou na casa em que me hospedava, os Tikuna/Magüta com quem eu interagia consultavam os anciãos e anciãs sobre os usos e significados dos objetos. Então eu procurei anotar os termos chave em língua Tikuna/Magüta, valendo-me do que aprendi com o projeto de dicionarização de Marília Facó Soares que participou da oficina de 2002 que promoveu a visita dos Tikuna/Magüta para examinar os objetos da coleção Nimuendajú e produziu um inventário lexical como um dos resultados da interação (Soares, 2003). A etnografia aqui exposta baseou-se em observação etnográfica, fundada principalmente em participação na vida cotidiana e em diálogo com os especialistas indígenas, seguindo mais preceitos hermenêuticos que receitas formais pré-dadas. A pesquisa da qual resulta o presente texto consistiu em uma oficina realizada em fevereiro de 2016 em Bunecü, que visava entender como os Tikuna/Magüta veem as relações céu-terra, em atividade apoiada pelo programa de pós-graduação em antropologia social da UFAM, pela Coordenação de História da Ciência do MAST e pela Coordenação Regional da FUNAI do Alto Solimões.

10Sem que se houvesse apresentado explicitamente perguntas sobre museu e patrimônio, Santo Cruz, o professor bilíngue que nos acompanhou na viagem, foi propositivo ao afirmar que quando querem designar o patrimônio no sentido atribuído pela sociedade ocidental utilizam o próprio termo em português, incorporando-o entre as palavras Tikuna/Magüta. Disse, contudo que existem na sua língua o termo Nacüma, que pode ser traduzido como costume, designando “aquilo que nos pertence”, aos grupos de referência unidos por parentesco ou afinidades, os primos, irmãos, cunhados e todos aqueles com que se identificam por vínculos identitários caracterizados pela etnicidade deste povo.

11Já o especialista indígena Ngematücü (+), que também participou da viagem ao Bunecü, afirmou que outra palavra – Ngemaü - teria sentido próximo, designando os objetos utilizados no seu dia a dia e que são levados para museus “dos outros”, expressando assim como tais artefatos que lhes pertencem circulam para o mundo dos museus, que não coincide com os lugares onde vivem territorialmente mas que também podem ser circuitos ou trajetos percorrido pelo pensamento e pelas práticas dos Tikuna/Magüta.

12Com essas proposições esses dois especialistas Tikuna/Magüta mostraram que integram o Museu Magüta ao que lhes pertence, indicando ao mesmo tempo, que esse lugar de cultura abriga objetos que lhes dizem respeito, mas seu patrimônio não se circunscreve a este local, sendo o território por eles ocupado o percurso patrimonial que alimenta a reprodução material e cultural desse povo. O presente trabalho procura reelaborar aquilo que é transmitido por esses conhecedores indígenas que têm muito a contribuir para a antropologia dos museus. Antes de entrar na análise propriamente dita dos objetos, cabe destacar pontos no histórico da antropologia do contato interétnico, em diferentes estudos baseados em grande parte no conhecimento Tikuna/Magüta.

3. Retomando a teoria do contato interétnico em termos históricos para pensar objetos e fronteiras

13Para o bom entendimento da realidade cultural do povo Tikuna/Magüta – a mais populosa etnia do Amazonas brasileira – trata-se de percorrer leituras fundamentais na teoria antropológica no Brasil no tocante à análise deste povo. Partimos de estudos que entendem sua cultura como indissociável da historicidade dos processos de colonização que produziu situações históricas de contato interétnico.

14Roberto Cardoso de Oliveira fundamentou teoricamente a crítica à noção de “aculturação” vinculada à ideia de que os índios “integrados” perdem sua cultura original. A partir do exame relações entre agentes da sociedade nacional com os índios, Cardoso de Oliveira volta sua crítica a ideia de conteúdos que se esvaziariam conforme se cumprissem as etapas de um processo de integração considerado natural e inevitável. As guerras intertribais caracterizadas por relações conflituosas preexistiram à expansão colonial europeia que influenciou profundamente as relações entre os indígenas. Mas o contato interétnico e intertribal implicou transformações : os povos alteraram-se uns aos outros, reinterpretando formas de vida não autóctones dentro de seus próprios parâmetros. Os grupos étnicos diferenciados persistem apesar das variações culturais, do contato e da interdependência étnica (Barth, 2000, p. 26). Com ênfase nos processos sociais, a base definidora nas relações conflituosas é o caráter contrastivo das identidades (Cardoso de Oliveira, 1976 ; Athias, 2007).

15Eduardo Galvão, com base nas teorias norte-americanas a partir de análises feitas no Brasil em pesquisas etnográficas, reformula a tipologia das áreas culturais considerando não apenas critérios linguísticos, históricos e geográficos, mas também o contato como um fator relevante (Galvão, 1979, p. 194). Este autor analisa o “encontro de sociedades” nacionais e indígenas como um processo de mudança cultural. Para Galvão, os processos de destribalização e assimilação dificilmente se completarão, uma vez que sempre haverá aqueles índios que “tentarão manter vivas as línguas, as tradições e o sentido de comunidade” (Galvão, 1979, p. 144).

16Cardoso de Oliveira criticou de modo contundente a visão de mudança cultural e “aculturação” tal como pensada na antropologia norte-americana. Este autor cunhou a noção de “fricção interétnica” (Cardoso de Oliveira, 1996). Não se trata mais de uma volta à ideia das sociedades indígenas intocadas e da tarefa da reconstrução cabal de suas culturas originais (Redfield, Linton e Herskovitz, 1936). O trabalho do antropólogo consiste em analisar como, na situação de contato, são constituídas definições estigmatizadoras sobre os índios - os Tikuna/Magüta, no estudo de Cardoso de Oliveira - sem desconsiderar enunciados produzidos nas falas destes índios como inseridos em campos semânticos específicos (Cardoso de Oliveira 1996, p. 32).

17A sistematização da abordagem da antropologia histórica advogada por Pacheco de Oliveira (Oliveira, 1999, 2005) focaliza a sujeição dos índios pelos patrões ou a sua depreciação pela FUNAI que os inferioriza através da tutela indigenista como processos de dominação em situações históricas determinadas considerando acontecimentos históricos em pesquisas empíricas. Novos trabalhos consideram processos políticos e históricos em situações concretas de fronteira (Faulhaber, 1999, Gárcez, 2015) onde os índios estão sujeitos a condições históricas de dominação paternalista, destacando-se a inferiorização mediante práticas tutelares que servem a interesses anti-indígenas.

18O Museu Magüta, criado em contexto de afirmação indígena, no entanto está certamente nesse campo complexo de influências. Entre estas, quer-se destacar aqui como definições tão importantes da antropologia brasileira envolvendo a crítica dos discursos e práticas de dominação no contexto tutelar podem ser relevantes para a análise da antropologia em museus, incorporadas à discussão atual sobre “zonas de contato”.

19As definições sobre contato interétnico aqui expostas fundamentam o entendimento da “vida social das coisas” (Appadurai, 2008) exibidas no Museu Magüta. Todavia, no presente trabalho focalizam-se mais as descontinuidades dos contextos e dos objetos que propriamente de biografias ou trajetórias lineares (Kirshenblat-Gimblett, 1989 ; Oliveira, 2000). A seguir será relatado breve histórico para entender as relações sociais e culturais que estão por trás dos (deslocamentos dos) objetos ali exibidos.

4. Histórico das mobilizações Tikuna/Magüta sua relação com a criação do Museu Magüta

20O Museu Magüta foi criado dentro de histórico de lutas que implicaram o entendimento que a cultura é delas indissociável e mesmo central ; fundado em projeto pioneiro do enfrentamento dos problemas que tocam aos museus indígenas. Estes estão na ordem do dia e envolvem processos jurídicos específicos (Abreu, 2015 ; Cury, 2016) e que dizem respeito a processos educacionais (Freire, 2016).

21Os conflitos étnicos dos movimentos e das organizações indígenas envolvem disputas entranhadas nas práticas Tikuna/Magüta. A organização Tikuna/Magüta mais antiga é o CGGT (Conselho Geral da Tribo Tikuna/Magüta), criado em 1982 no conjunto de embates pela demarcação das terras indígenas. Neste contexto foi editada, com a participação de representantes deste Conselho, uma coletânea bilíngue de relatos que organizam os principais enunciados fundadores relacionados ao povo Magüta (1985).

22Conforme informações do Instituto Socioambiental estimam-se mais de 53.000 indígenas Tikuna/Magüta no Brasil (FUNASA, 2009) e e 7.000 no Peru (INEL, 2007) além de 8.000 na Colômbia (Goulard, 2011)5. Vivem em situação de contato interétnico já há mais de 300 anos nos citados estados nacionais fronteiriços. A indianidade é reconhecida em códigos jurídicos de legislações brasileiras que contemplam a especificidade indígena. Os Tikuna/Magüta do Brasil, da Colômbia e do Peru vivem hoje problemas que perpassam as diferentes situações nacionais, independentemente do país onde estejam localizados geograficamente. A visão romantizada da identidade e da cultura indígena desqualifica aqueles por não corresponderem à imagem idealizada construída pelas etnias nacionais justifica as invasões e ameaças à subsistência física e cultural dos índios. A etnicidade constitui-se no campo da relação entre discursos e práticas étnicas com base em fricções entre indivíduos pertencentes a povos que manifestam interesses divergentes em situações conflituosas6.

23Em 1988, com apoio de agências filantrópicas da Holanda e Inglaterra o CGTT iniciou um « processo de captação de peças etnográficas, dando origem ao acervo do Museu Magüta, instalado em uma casa de alvenaria junto à sede do CGTT » (Oliveira,2002, p. 74). A história deste museu remonta a maio de 1985 quando equipe de pesquisadores do Museu Nacional, da UFRJ - coordenada pelo prof. João Pacheco de Oliveira, juntamente com lideranças indígenas do Conselho Geral da Tribo Tikuna/Magüta (CGTT), entre as quais se destacam Pedro Inácio Pinheiro (Ngematücü) e Nino Fernandes - criaram o Centro de Documentação e Pesquisa do Alto Solimões (Centro Magüta), como entidade civil sem fins lucrativos sediada na cidade de Benjamin Constant (AM) e destinada a promover a cultura Tikuna/Magüta.

24Concorreram para a implantação do Centro Magüta o Ministério da Justiça, a UFRJ (Museu Nacional e Faculdade de Medicina), o Ministério da Educação, o Ministério da Cultura, a FUNAI, a UFAM, a FUNASA e o Ministério do Meio Ambiente, bem como diversas agências nacionais e internacionais, como a OXFAM/Recife, a ICCO/Holanda, Mèdecins du Monde/França, Amigos da Terra/Itália, VIDC/Áustria, entre outras. O Museu Magüta foi inaugurado em 1991 e a partir de 1996 passou a ser administrado exclusivamente pelos índios Tikuna/Magüta por meio do CGTT, sediado neste museu7.

25A partir de então esse museu passou a ser guardião de objetos Tikuna/Magüta., em consonância com a demanda no seio de comunidades deste povo de quebra com o processo de apropriação cultural por meio da formação de coleções inicialmente de colecionadores privados e de museus de vários países do mundo (Munique, Dresden, Berlim, Viena etc.)8. Outros museus brasileiros (Museu do Estado de Pernambuco, Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, Museu da Universidade Federal de Santa Catarina) também guardam importante acervo de objetos deste povo.

26Após a demarcação das terras Tikuna/Magüta, em 1992, surgiram outras organizações que reivindicam o status de representativas dos Tikuna/Magüta. A primeira reunião da OGPTB (Organização Geral de Professores Tikuna/Magüta do Brasil) ocorreu em 1983, na comunidade de Santa Inês, com professores Tikuna/Magüta de diferentes comunidades. A FOCCIT (Federação das Organizações e Caciques Tikuna/Magüta foi fundada em 1998 articulando líderes Tikuna/Magüta com trânsito nas cidades de Tabatinga e Benjamin Constante e conhecedores do mundo político. Organizações femininas voltaram-se para a produção e comercialização de objetos artesanais como a AMIT, (Associação de Mulheres Tikuna/Magüta), criada em 1998, e a Associação de Mulheres Tikuna/Magüta Artesãs de Bom Caminho (AMATU) em1999.

27Em 1998, em assembleia de capitães, o representante Tikuna/Magüta Nino Fernandes foi escolhido como Diretor do Museu Magüta, que, a partir de assembleia de dezembro de 2000, na aldeia Ribero (T.I Eware II) que também o elegeu como presidente do CGTT, que passou a ser sediado neste museu. Com a sua morte e de Ngematucü, o museu passou a ser dirigido por Santos Cruz. A sua ação tem-se voltado a ações emergenciais, sobretudo nas áreas de saúde e desenvolvimento econômico, uma vez que a situação política, sanitária e econômica Tikuna/Magüta é muito precária, gerando-se incessantemente problemas de difícil solução que requerem uma resposta imediata por parte da organização representativa. Contudo, conforme informação de 2017 por índios Tikuna/Magüta, nos dias de hoje a FOCCIT e a AMIT estão enfraquecidas, O CGTT e a AMATÜ agregam maior participação dos índios deste povo.

28A OGPTB, formalizada juridicamente em 1986, conta com 481 professores indígenas bilíngues (Tikuna/Magüta e português) titulados em nível médio em cursos regulares anuais no Centro de Formação de Professores Tikuna/Magüta - Torü Nguepataü, na aldeia de Filadélfia (Benjamin Constant) que atendem a 16.100 alunos nas aldeias, conforme censo de 2005. Estes professores vêm sendo absorvidos e remunerados formalmente pelas prefeituras, substituindo progressivamente os professores não índios, tendo já atingido mais da metade do corpo docente regular. A partir de 2006 em parceria com a Universidade do Estado do Amazonas iniciou o Curso de Licenciatura para Professores Indígenas do Alto Solimões, por demanda dos próprios professores Tikuna/Magüta sendo as aulas ministradas durante as férias escolares na próprio Centro de Formação de Professores Tikuna/Magüta9.

29Em 2011 o curso de formação de professores da UEA/OGPTB formou para o magistério superior 204 professores bilíngues Tikuna/Magüta Em fevereiro de 2016 iniciou o Mestrado profissional de Linguística Indígena, coordenado pela linguista Marília Facó Soares, do Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro. Este curso procura atender professores indígenas ativos, funcionando no período de férias escolares (ip Damião Carvalho Neto – Atchigücü – ver nota 7).

30Os dirigentes de associações que vivem na cidade estão distanciados – fisicamente - dos lugares onde residem os anciãos e as anciãs que já participaram de muitas festas, bem como da fabricação de muitos artefatos. Registra-se grande discrepância entre as interpretações dependendo de cada comunidade e sua localização (Oliveira 2000), sendo imprescindível a observação direta, no sentido de um redimensionamento dos significados recorrentes, a partir da correlação entre enunciados expostos nas narrativas Tikuna/Magüta e práticas rituais.

5. O recinto de reclusão

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[Fig. 1] – visão frontal do recinto de reclusão (Museu Magütta). (© Priscila Faulhaber, 2016)

31A imagem do recinto de reclusão - com paredes de talas de buriti - saltava aos olhos na sala do Museu Magüta destinada à festa da moça nova. Sua contemplação sugere reflexões sobre o ritual de puberdade feminina. Nota-se a abertura lateral pela qual a moça é colocada para ali ficar durante as primeiras etapas da festa. Mas a parede decorada em seu centro com imagem de arara vermelha é de fato a porta de onde a jovem sai para interagir com os mascarados, antes de ser submetida à principal provação, ou seja, ter seus cabelos arrancados pelas anciãs. A ave representa o clã da moça que ela recebe por linha paterna, da metade exogâmica que reúne os clãs da metade pena. À esquerda é figurado o clã onça da metade oposta à metade pena, que reúne os clãs ‘sem pena’ ou de pele, terra ou casca. Em outro cercado fotografado em festa presenciada na comunidade Barro Vermelho/Bunecü em 2010, a figura da onça estava no centro e na lateral direita figurava a ave inambu, da metade oposta à da moça. A divisão dos clãs Tikuna/Magüta em metades exogâmicas patrilineares é contemplada pela literatura antropológica (Nimuendajú, 1952 ; Cardoso de Oliveira, 1970 ; Oliveira Filho, 1988 ; Camacho, 1995 ; Faulhaber, 2003b).

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[Fig. 2] – visão frontal do recinto de Reclusão em festa no Barro Vermelho, 2010. (© Priscila Faulhaber, 2010)

32Os Tikuna/Magüta denominam Puye’ü a parede do compartimento contíguo ao recinto de reclusão da moça onde guardam o instrumento ritual denominado Uaricana ou To’cü10, O termo também denomina qualquer cercado, em relação de hiponímia incluindo as paredes de buriti que protegem os instrumentos rituais. Remete a todo o tipo de recipientes em que se guarda ou se protege algo ou alguém (Faulhaber, 2006). Este mesmo termo indica a separação ou o limiar entre diferentes mundos, bem como entre a vida e a morte. É igualmente estendido para o cercado de reclusão da moça. É traduzido para o português regional como “curral”, também denominado Turi na língua Ticuna/Magüta (França, 2020 :120). Cabe aqui reiterar a crítica de atos cometidos pela etnia nacional como encarceramento de escravos indígenas que assim, sendo aprisionados eram tratados como gado. Aqueles que promoviam os chamados descimentos característico da história colonial nas relações entre as etnias nacionais e as sociedades indígenas reiteravam a postura etnocêntrica de animalizar os índios dizendo que os prendiam em “currais”, ou seja, tratá-los como se não fossem humanos11. Para evitar corroborar os estigmas que pesam sobre os Tikuna/Magüta em geral e sobre as moças submetidas ao ritual em particular, emprega-se aqui o termo Puye’ü na língua Tikuna/Magüta, dispensando o emprego do termo regional. Sem querer escamotear o peso histórico da dominação que impregna discursos e práticas, cabe valorizar as denominações autóctones e mostrar a sua significação na cultura deste povo.

33O Puye’ü (ou Turi) ali exposto como objeto de Museu foi elaborado e empregado em festa da moça na localidade de Belém do Solimões na terra indígena Évare I(ip Damião Carvalho Neto, ver nota 5), na margem esquerda de Solimões, a poucos quilômetros da embocadura do Igarapé São Jerônimo ou Tunetü. Contudo não está registrado em lugar algum do Museu Magüta o nome da moça que esteve ali enclausurada durante a sua iniciação como mulher. Evidenciam-se as descontinuidades – como a morte dos anciãos que guardavam os conhecimentos antigos - que impedem reconstituir a biografia individual. Todavia cabe aqui desvendar a significação dos processos sociais a que os objetos remetem uma vez que a interpretação cultural da relação entre estes indica sistema de significados a eles subjacentes. Antes que buscar trajetos individualizados, cabe perguntar sobre a procedência cultural da narrativa e seus personagens fundadores.

34Esse objeto é parte da construção da memória Tikuna/Magüta nesse museu abrigada e que remete a processos identitários evocados quando afirmam que fazendo a festa conservam a proximidade com os valores culturais do povo Magüta e sendo assim por eles referenciados. Isto porque nas descrições do ritual os Tikuna/Magüta contam que os corpos celestes desenhados no teto do Puye’ü constituem a base das histórias contadas como orientação para a moça que está sendo iniciada à sua condição de adulta no universo Tikuna/Magüta. O interesse na iniciação feminina marca uma relação de gênero, mas de nenhum modo aqui deixa-se de pensá-la em termos relacionais, ou das relações de oposição e complementaridade no que diz respeito às relações homem-mulher.

35Deste modo, o Puye’ü pode ser pensado em termos topológicos. Isto inclui pensar a verticalidade, como miniatura da casa, microcosmo cujo referencial são as esferas superiores, onde estão as aves, as nuvens, os corpos celestes; e, paralelamente, a horizontalidade das relações territoriais, que incluem a terra, as águas, a floresta; e ainda os movimentos centrípetos dos processos de identificação bem como o extrínsecos, considerando a expansão Tikuna/Magüta bem como o contato interétnico e -como não se trata de um povo isolado - o mundo dos brancos.

36A significância do Puye’ü estende-se a outros recintos homólogos como a escola e o próprio museu. Como artefato tangível, remete a lugares nos quais é reproduzida a cultura Tikuna/Magüta materializando assim aquilo que lhes pertence não apenas em termos materiais, visto que as interpretações sobre esse recinto de reclusão ou outros artefatos são relatadas em narrativas locais, regionais, étnicas.

37Os Tikuna/Magüta permitem a observadores externos de determinada “festa de pelação” saber o nome da(s) moça(s) sujeita(s) à iniciação. O nome e o clã do pai e da mãe tampouco é segredo. Mas o que é enfatizado é que ela recebe dentro do recinto de reclusão ensinamentos dos anciãos e, sobretudo das anciãs., estes sim secretos. Isto não impede a transmissão no decorrer da pesquisa de narrativas Tikuna/Magüta assertivas nas explicações do cosmos, prescritivas sobre a maneira de seguir os ensinamentos dos heróis culturais bem como performativas em seus efeitos no ritual de puberdade feminina e na organização social12.

38Afirmam os Tikuna/Magüta que segundo prescrição dos heróis culturais, a determinação de uso de madeira de taperebá na construção das paredes do recinto de reclusão de modo a tornar-se mais resistente para garantir o total isolamento da moça que na iniciação entra em contato com os heróis culturais e transporta-se mentalmente ao Eware, local encantado, para que se realize a metamorfose da menina em mulher, processo, segundo termos empregados em interpretações Ticuna, análogo à transformação da larva em borboleta (Faulhaber, 2000a, 2000b.). Mas usualmente e mesmo no Museu Magüta usam-se paredes de buriti, material mais leve e maleável bem como fácil de encontrar na floresta.

39Ainda na sala da moça do Museu Magüta, pregadas à parede oposta à que está o Turi dispõem-se cinco bastões cerimoniais esculpidos em madeira. Os três primeiros da esquerda para direta apresentam motivos decorativos relacionados a Jacaré e o quarto animais de pele e casca e o quinto de peixe de casco. Os cinco bastões são decorados com motivos do ritual de puberdade como grafismos de borboleta ou do desenho de diferentes cobras. Ao lado há um tambor de pele e vitrine dentro da qual se destaca escultura em madeira indicando a figura do inimigo aprisionado. Na parede intermediária está a cara da máscara Berü ou borboleta encantada, ente malévolo com grande influência no ritual. Compõem a exposição ao centro da sala os grandes instrumentos proibidos To’cü e Buburi, descritos etnograficamente por Nimuendajú (1952).

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[Fig.3] – parede dos bastões cerimoniais. (© Priscila Faulhaber, 2016)

40Durante a pesquisa, registrou-se que esses bastões não consistem em “bastões de ritmo”, tal como indicado na literatura especializada (Camêu, 1977, p. 225, Ribeiro, 1988). Seu significado, segundo afirmaram os próprios índios Tikuna/Magüta ao contemplar os objetos, é associado ao uso de antigas armas de guerra, usadas em ocasiões de ataques inimigos. Homens, mulheres e crianças carregam tais bastões enquanto dançam em círculos no ritmo dos tambores de pele (Faulhaber, 2005). Os bastões cerimoniais são esculpidos em madeira, com motivos relacionados a enunciados míticos que, muitas vezes, fazem com que esses artefatos sejam representados como prolongamento do corpo humano, visando ampliar sua força e seu poder para realizar determinados fins por meio de ações de significado mágico-ritual. Um exemplo é o bastão cerimonial, registrado no livro de tombo do Museu Goeldi com o número 4152, que foi interpretado pelos Tikuna/Magüta como um artefato contendo mão e braço humanos, e que tem no seu lado oposto, um “peixe flecheiro” (Faulhaber, 2007, p353).

6. A “cantiga/história” de Worecü

41Entre os diferentes relatos sobre a festa, destaca-se a “cantiga de worecü”, que conta a história de Too’ena, que foi esquartejada pelos “donos” ou entidades extraordinárias que controlavam os instrumentos que as moças eram proibidas de ver e tocar. Essa narrativa fundadora do ritual de puberdade refere-se à história da primeira moça que foi submetida à punição e que instaurou a chamada “festa de pelação” e que é evocada em cada festa da moça e lembrada mesmo quando não lembram o nome da moça específica que foi submetida a determinada cerimônia.

42O igarapé São Jerônimo ou Tonetü localiza-se nas cabeceiras do igarapé Éware, que desemboca no Igarapé São Jerônimo ou Tonetü. Contam os Tikuna/Magüta que seus heróis culturais Yoi e Ipi pescaram aqueles que, segundo afirmam hoje os Tikuna/Magüta, foram os primeiros homens do povo Magüta. Os Tikuna/Magüta que formam as comunidades dos que vivem ao longo do Igarapé São Jerônimo cultivam a memória dos heróis culturais e a prática do ritual de puberdade. Destaca-se a do Barro Vermelho, ou Bunecü, pela regularidade da prática da festa da moça nova. Ali registrei em fevereiro de 2016 o canto de Metatüna Icthina no qual esta anciã relata a história da realização da primeira festa como transgressão da punição de To’oena, filha do herói cultural Yoi’i. Linguistas Tikuna/Magüta13 transcreveram em Tikuna/Magüta e traduziram para o português o canto de Worecü, ou adolescente que é submetida ao ritual de puberdade.

Aquela pessoa querida, a moça nova, por sua causa de você que não cuidava dela, agora na beira do igarapé Eware, eles vão esquartejar. Não é para ser mantimento. Depois não chore por causa disso. É por isso, desde o nascimento, que você deve cuidar da sua criança. Está bom, querida moça nova.

43Esta cantiga consiste em uma advertência que explica porque a moça é submetida ao ritual e mostra a importância do compartimento de reclusão. Durante sua preparação para a festa de puberdade, Too´ena entrou no compartimento onde estavam guardados a Uariacana macho (To’cü) e fêmea (Buburi), tidos como instrumentos proibidos (Nimuendajú, 1952 ; Goulard, 1989 ; Faulhaber, 1999). Quando olhou para estes, os donos dos mesmos, que eram seres vivos, enfureceram-se e a esquartejaram. Os heróis culturais obrigaram seus parentes a comer a carne de Too´ena, proibindo-lhes de chorar sua morte. Afirmam que por este motivo, até hoje o Igarapé São Jerônimo tem a cor vermelha de sangue. Essas restrições cerimoniais são lembradas em todos os rituais presenciados no contexto dessa pesquisa, denotando a significação da reclusão. Tem-se notado nas observações etnográficas que nos dias de hoje enfraqueceu-se a rigidez da proibição de que as mulheres durante o ritual ingressem nos compartimentos de reclusão e vejam os instrumentos To’cü e Buburi.

44A cantiga que descreve a história da instauração do ritual é entendida pelos especialistas Tikuna/Magüta como de “advertência” e de ensinamento, e funciona, como a própria realização da festa, como uma forma de educação informal, de transmissão das obrigações da moça. Afirmam que se a moça não for submetida a tal provação após a chegada da menarca, não apenas ela e sua família, mas todo o grupo de referência está sujeito a perigos materiais e imateriais que faz que se distanciem dos valores Magüta e deixem de ser Tikuna/Magüta. Esses índios afirmam que cada encenação implica particularidades de acordo com o local e a comunidade que a realizam e seus falantes têm entonações diferentes de outros locais.

7. Significações rituais na festa da moça nova Tikuna/Magüta

45Em diferentes momentos do ritual, aparecem símbolos que ordenam a visão de mundo Tikuna/Magüta. A moça e o tio paterno são adornados por um cocar que representa o sol. Nas máscaras e no interior e no exterior do recinto de reclusão são desenhados ícones que representam o sol, a lua ou outros corpos celestes, bem como seres antropomorfos, fitomorfos e zoomorfos. Entre estes últimos encontram-se referências a répteis (cobra, jacaré), aves (águia, gavião, urubu) e mamíferos (onça, macaco, tamanduá).

46A “relação de complementaridade” entre as metades é expressa através do uso dos instrumentos durante o ritual. Por exemplo, a taricaya, um instrumento de percussão fabricado com casco de tracajá (que vive na terra, que se opõe ao jabuti, que vive na água), de fundamental importância no ritual é associado à presença de meninos da metade pena. O instrumento associado à metade “não pena”, a “buzina de taboca” (bambu) ou coiri, é um instrumento de sopro. Seu uso, bem como o da taricaya em clãs que representam o seu oposto estejam relacionados à combinação destas metades que se juntam no ritual expressando os processos identitários Tikuna/Magüta (Camacho, 1995,1996). O próprio branco é incorporado a esta organização social, uma vez que seus filhos com uma Tikuna/Magüta são considerados como pertencentes à nação boi (woca, em Tikuna/Magüta) e à metade não pena (Faulhaber, 2006).

47Se com os ensinamentos dos heróis culturais as adolescentes são ensinadas a suportar as aflições de ter seus cabelos arrancados, hoje muitas mulheres passam a considerar este ritual uma imposição, procurando evitá-lo nas comunidades de grande circulação de agentes externos (Belém do Solimões), ou próximas aos centros municipais do Brasil (Umariaçu e Filadélfia), ou em Letícia, na Colômbia. Em muitas áreas as Tikuna/Magüta substituem o “arrancar dos cabelos” pelo corte com tesoura, ainda que sigam as prescrições de cobrir os cabelos cortados com um pano amarrado à cabeça. A festa, no entanto, continua sendo realizada em muitas comunidades enquanto manifestação de catarse das fricções Tikuna/Magüta (Faulhaber, 2006).

8. Asterismos Tikuna/Magüta

48O recinto de reclusão, como um microcosmo, abriga, na parte visível de seu topo, figuração do céu com os corpos celestes. Durante a citada viagem a Bunecü de 2016 os Tikuna/Magüta comentaram que o asterismo que denominam « Periquitos no Aturá”(Wotura) » corresponde à figura que, conforme se infere das observações etnográficas, fica na área do céu onde está a nossa constelação do Corvo. Próxima a esta fica a área do céu conhecida no Ocidente como constelação do Cruzeiro do Sul, que aparece ao chegar estiagem. Os Tikuna/Magüta ali veem a cabeça do Tamanduá cuja briga com a Onça se estende até o conjunto de estrelas do que é convencionado ocidentalmente como Escorpião onde estão, na chamada estrela de Antares, os olhos do felino em contenda com o papa-formigas. O movimento das imagens vistas pelos Tikuna/Magüta no céu está associado à sazonalidade. Quando desaparece a briga acima descrita, surgem no céu a Tartaruga- Bawetá - (os meninos apinhados em seu casco correspondem às nossas Plêiades), a Queixada do Jacaré – Coyatchicüra - (correspondente ao que conhecemos por Touro) e a perna da Onça – Wucutcha - ou Gancho). O aparecimento destas configurações celestes corresponde à chegada das chuvas.

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[Fig. 4] – figuração esférica do céu com os asterismos, incluindo o « periquitos no aturá » (© Ngematücü, 2016) Desenho de Ngematücü – cedida pela autora em termo de cessão, 2016).

9. Os trançados de palha

49Os depoimentos apresentados na ocasião da pesquisa de campo de 2016 destacaram os trançados de palha, usados inicialmente para transportar objetos de uso pessoal ou alimentos. Diferenciam o termo genérico regional « paneiro » que pode ser qualquer tipo de cesto com fim utilitário, do termo « aturá », elaborado com requinte com objetivo de produzir artefato mais durável e resistente para uso doméstico, para que os bens ali contidos não caiam no caminho, a farinha não escoe e os volumes não se dispersem.

50Lopes (2014) distingue dois tipos de cesto, o buré e o pacará que diferencia conforme caracterização de Ribeiro (citada por Lopes, 2014) respectivamente como produção “para dentro” e “para fora”, observação a que se somam as inferências aqui apresentadas sobre a relação entre o que é intrínseco e extrínseco como marcados por forças centrífugas e centrípetas. A fabricação do buré remete a técnicas descritas nos relatos sobre as entidades femininas Mawacha e Aicüna, irmãs dos heróis fundadores Yoi’i e Ipi. A demanda do mercado, conforme Appadurai (2008,48), atende a determinações econômico políticas da esfera do consumo ; remodela os padrões concebidos culturalmente pensando na utilização pelos compradores. As artesãs individuais interferem sobre os produtos artesanais não unicamente de acordo com o pré-constituído, imprimindo sua criatividade nos artefatos voltados à comercialização adaptando o cesto pacará simples para venda como abajures. Confeccionam estes com a mesma técnica, diferido apenas no número de talas de arumã empregadas e no tamanho do objeto, que não pode ser pequeno na variação comercial pois nesta variação menor nesse caso as talas podem quebrar (Lopes, 2014, pp 128-130). A reinvenção na técnica assim articula o domínio das referências da cosmovisão com aspectos sociológicos e rituais.

51Os trançados Tikuna/Magüta dispõem diferentes padrões decorativos ou ornamentais utilizados em cestos e peneiras, « asa de borboleta », « escama de samoatá », « asa de gaivota » « tutuchii (giboia) », « casco de jabuti », « casca de tronco de buriti » e « paiwecü, » - teia de aranha, peito de pássaro, malha ou rede. Este último termo é utilizado para designar todas as formas de trançado de palha bem como a arte de trançar como domínio de linguagem que comunica as mulheres com o cosmo, tal como informado por professores bilíngues colombianos (Faulhaber, 2003b).

52O termo Tikuna/Magüta namatü ou abreviadamente matü é traduzido pelas artesãs como desenho, pintura, bordado, grafismo. Esta última designação tem sido empregada para as pinturas faciais e corporais de povos indígenas (Vidal, 1992). No caso dos padrões ornamentais da cestaria Tikuna/Magüta, estes designam figuras traçadas por meio de linhas (retas ou curvas) que se quebram em ângulos dividindo a superfície em campos simétricos (Teixeira, 2012, p. 54). Lopes destaca que variantes designadas como paiwecü, ou seja, “peito de pássaro” ou “malha”, rede, registradas por artesãs do Bom Caminho seguem terminologia adotadas no livro paradidático de formação de professores (Gruber, 1992). No quadro exposto na sala de venda de artesanatos do Museu Magüta são reunidos tais padrões decorativos, usados, portanto, não só para projetos educativos como expostos museologicamente.

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[Fig. 5] – Quadro com os padrões figurativos exposto no Museu Magüta. (© Priscila Faulhaber, s/d)

53Na mesma sala onde está exposto este quadro são vendidos os objetos artesanais que além dos cestos e peneiras, também podem ser esculturas em madeira muirapiranga que figuram animais que ao longo do presente trabalho foram mencionados como constituindo o imaginário Tikuna/Magüta e que também estão no seu universo vivido : onça, tamanduá, tartaruga, canoa, remo, borboleta, coruja, diferentes tipos de peixes, cobras ou outros seres animados ou inanimados. Estes objetos para venda são concebidos de certo modo como reproduções ou recriações - para os turistas ou outros visitantes brasileiros e estrangeiros ou mesmo para interessados do seu próprio povo- dos objetos rituais que estão expostos no Museu ou armazenados do chamado depósito, como as flechas e lanças, objetos cerimoniais que para eles representam as armas retiradas pelos conquistadores e que são extensões do corpo humano nas viagens de pajelança ou de iniciação quando o pensamento Tikuna/Magüta transporta-se para o cosmo. Mas também viajam para o mundo dos museus que deles se apropriam. Ali são expostos como uma mostra da cultura desse povo. Afirmam não almejar recuperar os objetos materiais armazenados em museus, mas estudar os conteúdos significativos de modo a empregá-los no treinamento de artesãos.

Concluindo

54Os objetos expostos no Museu Magüta têm uma função educativa não apenas para visitantes interessados em uma cultura exógena, mas atendem a interesses dos professores bilíngues, líderes dos diferentes movimentos e organizações que representam os grupos residenciais, bem como os Tikuna/Magüta ou membros de outras etnias que transitam pela cidade de Benjamin Constant. Além de treinamentos de artesãos, lá são realizadas reuniões do CGTT, organizações femininas, de professores e agentes de saúde.

55O recinto de reclusão da moça, como artefato exibido no museu Magüta que como exposto no presente trabalho pode ser visto como um microcosmo que denota práticas ainda vivas na cultura Tikuna/Magüta como a festa da moça nova, materializa o script da performance deste ritual como relevante para a continuidade da vida social de seu grupo de referência. Esta cerimônia também serve como uma estratégia de ensino (ainda que não escolarizado) praticada por aqueles que querem viver conforme o modo de vida do povo Magüta e que assim se diferenciam de atores, comunidades e representantes da sociedade nacional brasileira. Inferem-se daí homologias entre o “recinto de reclusão” a casa Tikuna/Magüta, a escola onde se ministra a educação escolar indígena e o próprio Museu.

56Daí se conclui que o Museu Magüta como local de cultura, comporta ações Tikuna/Magüta que reelaboram práticas pedagógicas próprias a esses índios, indicando movimentos de identificação que não se circunscrevem a circuitos fechados entre as quatro paredes de depósitos de objetos de cultura material, mas envolvem viagens ao universo cultural de referência deste povo.

57Antes do que trajetórias biográficas lineares, examinou-se no presente trabalho deslocamentos e descontinuidades de objetos no âmbito museal. Estes também implicam percursos no mundo dos brancos, através dos objetos que foram coletados para museus de todo o mundo que servem como “embaixadores” dos Tikuna/Magüta em seus movimentos centrífugos bem como as trajetórias de agentes deste povo que se preparam para ser professores, agentes de saúde, lideres reconhecidos nacional e internacionalmente – entre os quais se incluem mulheres que expressam a visão feminina do mundo e que, embora transitem por diferentes universos, não perdem referência dos seus vínculos com o pensamento Magüta, sua cultura e seu meio de procedência.

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Notes   

1 Grafa-se aqui Tikuna/Magüta conforme a convenção da Associação Brasileira de Antropologia, mantendo na bibliografia o nome conforme citado por cada autor.

2 O presente texto baseia-se na leitura de estudos voltados à topo-análise, remontando a Gaston Bachelard (1961). Para evitar cair em essencialismos, a reflexão baseia-se em leitura antropológica da análise de Pierre Bourdieu (1970) da casa Cabyle, considerando que aqui se trabalha com etnias indígenas e não entidades sociológicas como os grupos sociais abordados sociologicamente por este autor.

3 Agradeço as sugestões de Pascale de Robert no sentido de detalhar procedimentos antropológicos adotados no presente trabalho.

4 Esta primeira viagem foi realizada em projeto coordenado por João Pacheco de Oliveira Filho sobre O Universo Tikuna/Magüta, financiado pelo Programa de Proteção às Florestas do PPG-7 e resultou em artigo publicado em (Faulhaber, 1999).

5 (https://pib.socioambiental.org/pt/povo/Tikuna/Magüta/1342, acesso em 15 de março de 2019).

6 A presente pesquisa é resultado de várias viagens de registro etnográfico resultado de estadias no Bunecü setembro de 1997, maio de 2002, fevereiro de 2010 e fevereiro de 2016. A despeito do processo em curso de urbanização, têm-se observado movimentos no sentido de fixar residência em colinas não inundáveis, que constituem lugares de significação étnica, em uma aproximação com os valores do povo Magüta, do qual descendem os Tikuna/Magüta, conforme informado em vários depoimentos registrados em diferentes fontes etnográficas. Entre esses lugares, destacam Enepü, Otaware, ou várias aldeias e grupos de mobilização ao longo do igarapé São Jerônimo (Tonetü), entre as quais se destaca Barro Vermelho ou Bunecü

7 Informações compulsadas pela Associação Brasileira de Antropologia em, “Nota sobre a ameaça iminente de fechamento do Museu Maguta http,//www.abant.org.br/conteudo/005COMISSOESGTS/Documentos %20da %20CAI/Nota %20sobre %20fechamento %20do %20Museu %20Maguta.pdf, acesso eletrônico em 15/3/2019).

8 A partir da atuação de Curt Nimuendajú a formação de coleções Tikuna/Magüta para museus brasileiros como o Museu Paraense Emílio Goeldi e o Museu Nacional do Rio de Janeiro passaram a ser acompanhadas do estudo etnográfico (Nimuendajú, 1952). A criação de programas de pesquisa e pós-graduação em antropologia social no Brasil possibilitou o desenvolvimento de estudos por pesquisadores academicamente treinados com rigorosa orientação teórica como base de conhecimento etnográfico e linguístico circunstanciado

9 (https,//pib.socioambiental.org/pt/povo/Tikuna/Magüta/1350, acesso em 15/3/2019).

10 Os termos Tikuna/Magüta grafados no presente trabalho seguem formulações elaborada por Maríila Facó Soares no âmbito da linguística(Soares, 2008).

11 Adota-se aqui postura de comprometimento ético no sentido de não reiterar preconceitos concebidos em práticas de agentes das sociedades nacionais, A antropologia e a ética empregam procedimentos paralelos quando se trata de estabelecer a crítica cultural “against cultural prejudice against social status and against the language embodied in their self-expressions” (Rapport e Overing, 2007, p. 186, tradução minha).

12 Considero, na trilha de Fredrik Barth (2002), a teoria antropológica como um meio de articular diferentes formas de conhecimento, bem como orientar formas assertivas, prescritivas e performativas dos discursos e práticas sociais.

13 Agradeço aqui nominalmente aos linguistas Tikuna/Magüta que transcreveram a cantiga, Tiago Berezinho Anastácio – Dauàmücü Metchiicü - aquele que tem pluma vermelhe clã mutum João Clemente Gaspar – Metchuiicü aquele que tem pena bonita (clã mutum) Damião Carvalho Neto – Atchigücü - aquele que está sempre cantando (clã inambu ). Estabelecemos contato com eles no Rio de Janeiro, em viagem para participar como alunos do Mestrado Profissional de Linguística indígena, coordenado por Marília Facó Soares. Não cobraram pelo trabalho de transcrição e tradução, mas solicitaram cópia da gravação em vídeo da cantiga proferida pela anciã Metatüna Icthina, pois consideraram esta cantiga como de grande significação ritual e linguística. Manifestaram interesse em receber o vídeo « Nacüma. Aquilo que nos pertence », informando que consideram que pretendem utilizá-lo em sala de aula como instrumento educativo. Não pediram, contudo cópia de todo o material gravado.

Citation   

Priscila Faulhaber, «Objetos e movimentos em narrativas Tikuna/Magüta evocadas em percurso interpretativo do Museu Magüta», Cultures-Kairós [En ligne], paru dans Amazonies mises en musées. Échanges transatlantiques autour de collections amérindiennes, mis à  jour le : 12/06/2024, URL : https://revues.mshparisnord.fr:443/cultureskairos/index.php?id=2137.

Auteur   

Quelques mots à propos de :  Priscila Faulhaber

Priscila Faulhaber est chercheure titulaire du Museu de Astronomia e Ciências afins et professeure du Programme de Post-Graduation en Muséologie et Patrimoine (UNIRIO/Master) et du Programme de Post-Graduation en Anthropologie de l’UFAM. Elle s’intéresse à l’Histoire et à l’Anthropologie à partir de thèmes comme frontières et colonialisme, mouvements indigènes et socio-culturaux, objets frontaliers, patrimoines et musées. Elle a publié de nombreux livres et articles dans plusieurs pays.