Cacique Sotero : mestre da Museologia Indígena no Brasil
Alexandre Oliveira Gomes et Suzenalson KanindéDOI : https://dx.doi.org/10.56698/cultureskairos.2171
Texte intégral
Fotografia de Maria Haydeê tirada em 27 de outubro de 2023 durante a visita guiada no museu Kanindé durante o V Fórum Estadual de Museus do Ceará- Etapa Museu Kanindé.
Eu me lembro que meu avô tinha medo de falar na história indígena porque dizia que o branco matava o índio. Minha mãe e meu pai passaram isso pra mim. Até agora o meu pai, já com 80 anos, quando eu saía pros encontros lá fora, ele dizia : "Sotero tu tem cuidado com isso aí porque o povo matava os índios e vocês tão se declarando os índios, aí eles vão matar. Vocês são índios, mas fiquem calados". Mas você ser uma coisa e ficar calado, né... Aí eu fui e pensei : o museu são histórias, aí fui arrumando as primeiras pecinhas. Pra mim o museu são histórias. É só coisa feia, mas é uma coisa da cultura da gente. Eu comecei com estas peças, que era o que a gente trabalhava : o machado, a foice. Aí fui vendo que a caça é uma cultura. O que a gente faz de artesanato também. Cacique Sotero, 2011.
1José Maria Pereira dos Santos, nome de batismo do Cacique Sotero, 80 anos, nasceu no dia 15 de novembro de 1943 no Sítio Fernandes, zona rural do município de Aratuba, localizado no maciço de Baturité, conjunto de serras à cerca de 130 quilômetros de Fortaleza, capital do Estado do Ceará, região Nordeste do Brasil. Cresceu em meio às matas, acompanhando os pais desde pequeno nas caçadas e nos trabalhos agrícolas nas terras que herdaram de seus antepassados. Criador de uma linguagem museológica própria, que coloca a serviço da luta dos povos indígenas seus objetos, memórias e patrimônios culturais, enquanto ferramentas de luta e afirmação étnica.
2Em 1995, liderou um movimento de afirmação étnica e luta por reconhecimento como povo indígena, assumindo a função de cacique do povo “Kanindé de Aratuba”, etnônimo com o qual passaram se auto-identificar coletivamente. No mesmo ano foi aberto à população do sítio Fernandes o Museu dos Kanindé, com o objetivo de “contar a história do índio no meio da sociedade” (Cacique Sotero), inspirado em suas vivências como caçador e agricultor em meio aos resquícios de Mata Atlântica que há na serra de Baturité. Reinterpretando os saberes, conhecimentos e técnicas herdadas de seus ancestrais, o cacique Sotero criou um “sistema da mata”, fundamento de sua Museologia Indígena : concepção de objetos e patrimônios vinculada às ideias e categorias nativas de seu povo - “coisas das matas”, “coisas dos velhos” e “coisas dos índios” - noções com que classificam as coleções de objetos – tradução de modos de vida e cosmologias - que foram reunidas por ele ao longo da vida e que deram origem ao Museu dos Kanindé.
3Ao longo de vários anos Sotero implementou práticas museológicas visando a salvaguarda, a comunicação e a pesquisa feitas pelos Kanindé sobre sua realidade, além de abrir espaço para a visitação pública de um espaço museal, o que lhe qualifica como um dos pioneiro nos processos contemporâneos de descolonização e, mais especificamente, de indigenização dos museus na América Latina.
Cada vez que o tempo passava eu fui amadurecendo e fui achando e ganhando mais coisas, fui pensando que era uma cultura nossa, por exemplo, a caça que nois gostava muito de caça e ainda hoje nois gosta, só que elas tão mais difícil por causa das matas que foram muito acabada... Mais era eu pensar que aquilo ali era uma cultura nossa, como o milho e as outras coisas, tudo era coisa que ia ser bem difícil pra gente, por isso que eu guardava pra mostrar como era, porque quando eu fui vendo as coisas mudando eu pensei em guardar àquelas coisas pra gente ver a diferença de hoje pra o tempo passado. E comparava aquelas coisas como um museu, eu disse : eu vou guardar que são coisas velhas que nossos filhos talvez num, pro meus netos e meu povo que não conhece, eu vou mostrar as coisas velhas antigas que diziam que tinha índios (Cacique Sotero, 2011).
4Construtor de sentidos no presente, arquiteto dos sentidos sobre o passado, o cacique Sotero é um empreendedor étnico que estabelece uma consciente relação entre os objetos e o poder da memória, que se materializou na seleção de um conjunto de peças para a formação de um acervo material e a organização de um espaço para sua guarda e armazenamento, com a atribuição de uma série de significados, relacionados com o processo de construção da etnicidade e da memória indígena dos Kanindé de Aratuba.
5Esforçando-se para manter, por conta própria, o espaço físico e as atividades do Museu dos Kanindé durantes 25 anos, o cacique Sotero reverteu saberes apreendidos e acumulados em sua experiência como caçador e agricultor, na criação de uma "expografia caleidoscópica" que reflete as múltiplas temporalidades e formas de vida e cultura. Dono de uma oratória singular, arquivista e memorialista de seu povo, seleciona o que deve ser lembrado, arquitetando memórias para a construção de uma história Kanindé, demonstrativa da íntima relação entre o passado e o presente, conectada ao processo de reelaboração cultural que vivenciam desde 1995.
É porque índio nois se organizamos por uma história que eu tinha, meus pais dizia que nois era índio (...) e a história do museu é que são coisas velhas que quando a gente fala em coisas velhas antigas, é que os índios deixava as coisas velhas. Por isso que daí veio da gente organizar o museu pra contar a historia do índio no meio da sociedade (Cacique Sotero).
6Construtor de sentidos para o passado, arquiteto-narrador da história de seu povo, a Museologia Indígena do cacique Sotero fundamenta-se em saberes e conhecimentos sobre as matas, seus encantos, mistérios e segredos, incorporados nos sentidos dos objetos. As técnicas associadas à atividade da caça, bem como o material cinegético utilizado (armadilhas), possuem um lugar especial dentre os saberes museológicos indígenas que compartilha. Sua forma de fazer o museu indígena relaciona-se aos conhecimentos herdados de seus ancestrais sobre as coisas, a natureza e os seres que nela habitam : bichos, plantas e Encantados, por um lado e, por outro, às técnicas de produção material associadas ao fabrico de objetos da cultura material de seu povo, o trançado em palha, a cerâmica, os artefatos em madeira e a fiação manual de algodão.
7Ao ser um dos mestres criadores da Museologia Indígena no Brasil, o cacique Sotero atualizou as tradições e histórias de seus antepassados para as novas gerações, em contextos de mobilização étnica nos quais o museu se configura como um lugar de construção social dos sentidos de pertencimento, de escrita da história e de formação de novas lideranças.
Para mim, como um índio, como cacique, eu acho muito importante aquilo ali. Para quem ? Principalmente, para o mais novo, os alunos, que aquilo ali é uma aula que, quando eles vão com os professores consultar a gente o que é aquele, eu sei explicar ou também alguma liderança mais velha sabe explicar o que é e quem utilizou aqueles couros ali. A gente comia a carne e fazia do couro, costura, come, deixa o tamanduá, o tejo, que mesmo que é está olhando para ele vivo, para mostrar que tinha e tem ainda pouquinho, mas ainda tem aquela caça ali. Porque se a gente não mostrar aquilo ali, pode, hoje, o mais novo dizer “ou papai, ou vovô ou tataravô, dizia que comia isso, pegava aquilo e a gente nunca viu um couro ou uma figura, da onde ele disse que tinha no museu”.
8Mas lá tem essa história e tem as coisas para quem quiser ver ou viver. Eles não estão vivos, eles estão mortos, mas é um morto-vivo. Para a sociedade, a gente mostrar à sociedade, que existia aquilo ali. E é um livro, nós não vê um aluno hoje, não estuda num livro ? Nós também ensina o mais novo naquela coisas, que tem todo naquele quartozinho no nosso museu Kanindé, lá em Aratuba, no Ceará. Era isso1.
Notes
1 Apresentação oral do cacique Sotero, do povo Kanindé, na roda de conversa “A visão dos pajés, caciques e lideranças sobre os museus e a memória indígenas”, realizada no III Fórum Nacional de Museus Indígenas, dia 19 de outubro de 2017, em Nazaré, município de Lagoa de São Francisco (PI).