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A digitalização do desejo: entrevista com Richard MiskolciThe digitalization of desire : an interview with Richard Miskolci

Jair de Souza Ramos et Renan Alfenas de Mattos
mars 2023

DOI : https://dx.doi.org/10.56698/cultureskairos.2011

Index   

Texte intégral   

1Richard Miskolci é Professor Titular de Sociologia do Departamento de Medicina Preventiva da UNIFESP, onde coordena a área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde. Também é Pesquisador do CNPq e coordenador do Quereres - Núcleo de Pesquisa em Diferenças, Direitos Humanos e Saúde. É docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (UNIFESP).

2Doutor em Sociologia pela USP (2001), Miskolci fez estágio sanduíche na Universidade de Chicago e desenvolveu estágios pós-doutorais, com bolsa FAPESP, na Universidade de Michigan, em 2008, e na Universidade da Califórnia, em 2013.

3Tendo se dedicado, desde 2004, à pesquisa e orientação sobre usos das Tecnologias da Informação e Comunicação e criado o GT Sociologia Digital da Sociedade Brasileira de Sociologia, Miskolci nos oferece nessa entrevista a possibilidade compreender as transformações do campo de pesquisas sobre o Digital a partir de uma rica trajetória de pesquisa desde o Sul.

4Essa entrevista foi concedida a Jair de Souza Ramos e Renan Alfenas de Mattos.

Se observamos sua trajetória de pesquisa, vemos inicialmente um investimento importante na análise do modo como raça e sexualidade operam em discursos sobre a Nação Brasileira entre os séculos XIX e XX. Em seguida, vemos o investimento no campo da sociologia digital. Como o digital se tornou um campo de pesquisa para você ?

O investimento na análise da intersecção raça e sexualidade data do início de minha formação acadêmica e meu doutorado sobre o artista na obra de Thomas Mann. Prosseguiu como questão analítica transversal qualquer que fosse o objeto de investigação sobre o qual me voltasse e em que contexto histórico ele estivesse, inclusive na contemporaneidade. O digital se tornou objeto de pesquisa para mim por volta de 2004, quando o acesso à Internet ainda era muito restrito no Brasil, o que tornava o campo predominantemente de classe-média e alta, branco e metropolitano. Além disso, a rede era estática, acessada por computadores conectados via rede telefônica e a banda larga pouco acessível. Meu primeiro objeto de pesquisa foi uma comunidade na rede social mais popular no Brasil de então : o Orkut. Ao mesmo tempo que pesquisava a comunidade online e me familiarizava com a bibliografia disponível, aos poucos também comecei a orientar pesquisas que faziam uso da Internet como meio para pesquisa de campo, em especial com informantes que offline seriam quase inalcançáveis, mas que a rede facilitava travar contato e dialogar sobre temas que, face a face, eram mais difíceis de abordar. Minha investigação teve percalços e ganhou outros contornos a partir de 2007, quando estabeleci definitivamente como objeto de investigação a forma como homens homossexuais paulistanos usavam a rede em busca de parceiros. 

Mas o digital representou um novo campo de pesquisa ou uma mudança em um campo anteriormente constituído ?

À época, eu fui abrindo meu campo de forma que ele era indissociável das tecnologias de comunicação e informação. Durante quase dez anos eu pesquisei como paulistanos articulavam - na busca de parceiros - bate-papos online, sites de anúncios de busca de parceiros e messengers até a grande mudança trazida pelo advento dos aplicativos que rodavam em smartphones, na década de 2010. Logo percebi que meu objeto de pesquisa era uma forma contemporânea de práticas anteriores às TICs como o cruising e o hookup. Minha formação ajudou, pois fui treinado para pesquisa sociológica histórica. Assim, no começo do estudo, eu reli O Negócio do Michê (1987) e percebi que estava pesquisando o que hoje diria ser um processo de digitalização do desejo. Assim, consegui reconhecer meu campo como parte de uma linhagem de investigações, mas que trazia consigo uma transformação profunda na era da comunicação mediada e em rede. O misto de continuidade e mudança tornou a pesquisa melhor situada e com fontes claras para dialogar, mas também demandou um trabalho de engajamento em debates metodológicos, teóricos e conceituais.

Então, o digital se configurou como uma inflexão em sua trajetória de pesquisa sobre sexualidade ?

O digital se tornou um objeto de investigação para mim porque ele se impôs ao transformar as práticas sociais no campo das relações de gênero e sexualidade. As discussões metodológicas, teóricas e conceituais foram se transformando ao mesmo tempo que eu pesquisava. No Brasil, ao menos até a primeira década do século XXI, predominavam objetos de investigação que lidavam com os usos políticos das novas tecnologias, especialmente em uma linha que - hoje percebemos - era otimista em relação aos potenciais delas no aprofundamento da democracia. No exterior, sociólogas como Sherry Turkle e Eva Illouz faziam pesquisas mais afeitas aos meus objetivos e de meu grupo de pesquisa. Na época na UFSCar, estávamos mais preocupados com as mudanças subjetivas e na agência dos sujeitos em campos como as relações de gênero, na sexualidade, na autoajuda em rede, na busca de terapia online e em formas de gestão da vida pessoal e amorosa.

Nessa inflexão, o digital te propiciou constituir novas perguntas e/ou novos materiais de pesquisa em seu campo ?

As TICs abriram ao escrutínio um campo íntimo antes mais difícil de acessar e explorar. A forma mediada de contato tem suas vantagens, além do que permite - em alguns casos - a formação de um campo etnográfico multisituado. Destaco que, para mim, a Internet é uma fonte imensa de materiais para pesquisa. A identificação e seleção de materiais permite delimitar arquivos ricos e reveladores para a análise social. Nessa linha de pesquisa qualitativa, é fundamental delimitar bem um objeto e coletar um arquivo que permita compreendê-lo. Não concordo com linhas que confundem a sociedade com os dados que ela produz e/ou idealiza os bigdata como se tê-los por completo ou processá-los garantisse pesquisa bem feita ou resultados mais acurados. Os desafios de pesquisa na sociedade contemporânea envolvem mais decisões metodológicas bem fundamentadas do que a coleta da maior quantidade de dados possíveis. Assim, uma formação tradicional nas ciências sociais - somada ao contato com a bibliografia especializada - provê condições suficientes para estudar as práticas sociais, as formas de subjetivação e agência transformadas pelo digital.

Ao longo de sua trajetória de investigação e orientação nesse campo, quais as principais perguntas e textos de autores do norte que tem orientado sua abordagem do digital ?

A maior parte da produção até o começo da década de 2010, tendia a uma forma otimista de determinismo tecnológico na escolha de temas e nas próprias discussões que apontavam para uma suposta afinidade eletiva entre TICs e democracia. Hoje há um refluxo, e boa parte da bibliografia especializada vai em direção ao pessimismo explorando o outro lado : a aparente afinidade entre TICs e exploração capitalista, facilitadora de extremismos, populismos e autoritarismos. Considero que o determinismo tecnológico só pode ser realmente superado - e tais ondas de otimismo e pessimismo indissociáveis dele - quando o vasto campo de investigações dentro do qual atuamos reconhecer e incorporar uma abordagem menos centrada no tecnológico e mais atenta ao comunicacional. Nesse sentido, Eva Illouz foi minha maior referência, pois ela me fez compreender que uma pesquisa sociológica na era da hegemonia das TICs demanda analisar a interação entre a estrutura social, as práticas culturais e a ecologia midiática. É o que venho buscando fazer nesses quase vinte anos e apresentei em dois livros : Desejos Digitais (2017) e Batalhas Morais (2021). Na obra mais recente, afirmo que vivemos em uma esfera pública técnico-midiatizada, portanto em um contexto comunicacional que só podemos compreender quando refletimos, ao mesmo tempo, sobre suas bases econômicas e políticas, a nova ecologia midiática que ele delineia e as práticas sociais que esse aparato incita e permite.

Como essas leituras foram se modificando no desenvolvimento de suas pesquisas e orientações ?

Fiz uma trajetória gauche no campo, pois comecei com uma preocupação maior em relação ao impacto das TICs na vida pessoal e íntima enquanto a maioria estudava os usos coletivos e políticos das novas tecnologias. De certa forma, minha pesquisa e as que orientei por muitos anos na UFSCar eram menos ambiciosas. Queríamos compreender as transformações subjetivas e nas relações interpessoais. Em um arriscado exercício de autoanálise, creio que foi na finalização de Desejos Digitais (2017) que percebi como havia uma dimensão coletiva, sobretudo política, no que investigara por quase dez anos. Tanto nas buscas em segredo por parceiros do mesmo sexo por apps - que hoje não titubearia de qualificar como um tipo de empreendedorismo de si - quanto na forma como o próprio campo dos estudos de gênero e sexualidade começou a ser afetado por uma onda anti-intelectual e autoritária, marcada por escrachos em eventos e cancelamentos on-line.

Comecei a perceber que uma nova e promissora geração de pesquisadores/as e ativistas passara a se compreender e agir moldada pela formação dentro das redes digitais e isso as conectava, mais do que imaginavam, à nova extrema-direita que ascendia. Daí ter pesquisado, entre o final de 2017 até abril de 2020, o que se passava acompanhando inicialmente as redes ativistas e de extrema-direita nas redes sociais online, ao que somei pesquisa histórica e a análise de repertórios de ação e conceituais dos dois campos que se envolveram em batalhas que reconheci como sendo morais. Surgiu dessa pesquisa minha tese de titularidade, defendida já na UNIFESP, onde trabalho desde 2018, e publicada em livro, em 2021, como Batalhas Morais : política identitária na esfera pública técnico-midiatizada .

Minha trajetória de pesquisa partiu das mudanças subjetivas às de organização coletiva conectando características menos exploradas ou reconhecidas pela maior parte da bibliografia disponível às formas de ação coletiva atualmente problematizadas em seu caráter corrosivo para a democracia. Atualmente, sou o responsável pelo ramo brasileiro de uma pesquisa internacional sobre polarização política na América Latina e desenvolvo, individualmente, outra focada na desinformação em saúde durante a pandemia de Covid-19. Em ambas, tenho aprofundado meus estudos sobre a esfera pública que defino como técnico-midiatizada e, espero, seus resultados venham a contribuir para o campo de pesquisa sobre o digital.

Você observa tensões entre esses conceitos e a empiria sobre a qual trabalha ?

Dialoguei com a produção internacional, mas fui desenvolvendo uma abordagem teórica e conceitual situada ou alternativa para dar conta das minhas bases empíricas. Como sociólogo brasileiro com uma formação no final do século passado, sempre associei métodos e técnicas. A única constância foi uma perspectiva histórica e a análise na linha da Teoria Crítica. Sociologia, História e Psicanálise sempre se associaram nas minhas análises quer as bases empíricas fossem predominantemente etnográficas ou providas por outros meios de interpelação do social como grupos focais, entrevistas e arquivos documentais. Nesse caminho de conexão entre a empiria e os conceitos passei a associar às fontes da sociologia digital outras vindas da comunicação política e da sociologia da mídia, pois constatei que, no nosso campo de pesquisa, o tecnológico é inseparável do informacional e comunicacional. Em meus escritos sobre Sociologia Digital (cf. Miskolci, 2016 ; Miskolci & Balieiro, 2018) e polarização política (Machado & Miskolci, 2019 ; Miskolci, 2021), enfatizei aspectos que estão nessa confluência e que definem que o digital operou um ponto de viragem nas relações sociais com a disseminação dos smartphones a partir de 2013, na mesma época que se consolidou uma nova ecologia midiática centrada não apenas nas redes sociais, mas também na unificação dos perfis de uso, entrada e socialização online. Desde então, a exposição dos usuários das TICs aos mídia aumentou exponencialmente assim como suas relações interpessoais passaram a ser mediadas como nunca antes. Hoje tenho segurança de afirmar que até por volta de 2012 estudamos uma realidade digital, menos disseminada e intensa do que a que veio depois e na qual já estamos imersos quase como segunda natureza.

Por fim, tua trajetória de pesquisa te permite uma visão de longa duração sobre categorias de gênero e práticas sociais no Brasil. Você escreveu “O Desejo da Nação : masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX” que examinava representações de gênero na literatura, e mais recentemente publicou “Batalhas morais : Política identitária na esfera pública técnico-mediatizadora” onde batalhas morais são organizadas na Internet brasileira em torno de gênero e raça em termos que emulam discursos norte-americanos. Há um paralelo possível entre os dois momentos, que é o modo como os discursos do Norte servem de referência ao debate público sobre gênero e raça no Brasil. Contudo, se tomarmos a chamada "teoria do branqueamento" abraçada por intelectuais brasileiros em fins do século XIX, vemos que as teorias raciais do Norte são reconfiguradas aqui em um esforço por realizar projetos políticos de elites locais e no esforço por dar conta de uma identidade nacional concebida na chave da mistura racial e cultural. Então, pergunto : como você compreende as possibilidades e limites do uso de categorias teóricas do Norte na compreensão de práticas sociais no Sul ? Penso em três conjuntos teóricos específicos : a) teoria social antropológica e sociológica ; b) a teoria social nativa que está na base da construção das plataformas digitais ; e c) a teoria social nativa que organiza movimentos de luta político-culturais em plataformas digitais.

É interessante proporem a relação entre essas obras. Talvez fosse mais fácil articular O desejo da Nação (2012) e Desejos Digitais (2017), pois ambas - a despeito de tudo o que as distingue - exploram o papel do desejo nas relações sociais brasileiras. De qualquer maneira, aceito o desafio. São resultado de pesquisas sobre momentos históricos diferentes feitas com metodologias e fontes empíricas distintas. O Desejo da Nação resultou de uma pesquisa histórica feita tendo como base não apenas obras literárias, mas também outras fontes a que tive acesso nos arquivos do Rio de Janeiro. O objetivo era reconstituir e analisar a imaginação política das elites brasileiras em fins do século XIX, o que foi feito por meio das ideias correntes sobre sexualidade e raça. Já Batalhas Morais é uma pesquisa contemporânea sobre embates na nova esfera pública sob hegemonia das redes sociais, mais especificamente sobre as batalhas entre segmentos da sociedade brasileira que discordam sobre como incorporar as diferenças igualitariamente na vida social.

A sociedade brasileira de fins do século XIX era profundamente autoritária e a participação política restrita aos estratos mais altos, portanto os ideais e fantasmas das elites definiam as decisões políticas e moldavam as convenções sociais. A sociedade brasileira atual é uma sociedade que, a despeito da herança autoritária, teve uma ampliação da participação política. Desde o fim da última ditadura militar, em 1985, o engajamento político de setores sociais tornou o debate público mais rico e, atualmente na esfera pública técnico-midiatizada, também mais aguerrido. As batalhas são, ao mesmo tempo, indicativas de mais conflito e quiçá mais democracia, pois o dissenso e a disputa são dois lados de um mesmo processo histórico que costuma resultar, no médio prazo, na construção coletiva dos consensos possíveis.

Assim, uma reflexão sobre O Desejo da Nação e Batalhas Morais convida a contrastar dois contextos históricos e políticos. Em fins do XIX, as resistências às interpretações hegemônicas sobre a nação e as diferenças eram frágeis e sem condições para enfrentar as das elites. Indo no filigrana, a Geração 1870 enfrentou de forma reformista os termos hegemônicos atualizando o repertório para compreender o Brasil, mas de uma maneira que hoje consideramos conservadora e pouco afeita a uma compreensão positiva da nossa diversidade étnica, racial, etc. No presente, os segmentos sociais que se enfrentam são formados - lado a lado - por grupos ascendentes, portanto o debate indica um contexto menos elitista e em que os eixos de desigualdade social estão tensionados. E não em termos meramente importados do Norte.

A dependência de nossas elites de um repertório do Norte - especialmente europeu - no final do século retrasado era maior, ainda que já marcada por uma incorporação seletiva e - até certo ponto - criativa, mesmo que resultando em concepções que hoje reconhecemos como ultrapassadas e racistas. Atualmente, os embates políticos se dão em torno de eixos que podemos questionar se vêm do Norte ou foram gestados em um realinhamento geopolítico da segunda metade do século XX, já que seriam impensáveis antes da descolonização, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, das lutas por direitos civis em diversos países racialmente segregados, do surgimento ou reconfiguração de movimentos sociais em vários países, nas décadas de 1960 e 1970.

Assim, as disputas em torno das diferenças podem ser vistas como resultado das tensões entre Norte e Sul, entre as antigas metrópoles e colônias assim como, internamente, entre nativos, ex-escravizados e descendentes dos colonizadores e imigrantes, entre homens e mulheres, e assim por diante. Não me parecem termos vindos do Norte, antes criados em uma ordem global pós-colonial e de questionamento da hegemonia euro-estadunidense.

Hoje, as realidades econômicas, políticas e culturais estão interligadas, o que não quer dizer que sejam iguais. A despeito desse cenário empiricamente interligado, diverso e rico, as condições estruturais para produção de conhecimento não se disseminaram igualmente por todo o globo, além de se manter uma distribuição desigual de reconhecimento em relação ao que é produzido fora das antigas metrópoles. Ainda que haja desigualdades visíveis, a produção científica não está mais concentrada nos países centrais tampouco os intercâmbios teóricos e conceituais assimétricos mantém-se sem questionamento.

No Brasil, com a institucionalização do sistema nacional de pós-graduação a partir de fins dos anos 1960, conseguimos criar um sistema de pesquisa que nos garante condições mínimas para não sermos meros consumidores e reprodutores de modelos teórico-conceituais vindos de alhures. Nas ciências sociais, as teorias e os conceitos nascem da pesquisa empírica, a qual tende a ser localizada, portanto fincada em uma realidade social e política específica. Até mesmo os campos multi-situados podem levar a reconhecer a pluralidade dos contextos e a necessidade de articular teorias e conceitos a eles.

Em relação à tríade mencionada, na teoria sociológica e antropológica os limites dos conceitos criados em contextos distantes do nosso são quase consenso hoje em dia, mas pesquisadores reagem de formas distintas diante disso podendo ir da seleção criativa, a adaptação e ressignificação até, o que é mais desafiador, a criação de alternativas mais afeitas à realidade social que pesquisam.

No que se refere à teoria social nativa que está na base da criação das plataformas de comunicação digitais ainda me surpreende a força do mito da tecnologia como algo "internacional" e a quantidade de pesquisas que não estabelecem uma relação crítica com seus campos digitais. Ao invés de reconhecer as raízes culturais norte-americanas em uma plataforma de rede social, é mais comum encontrar alusões holísticas a um contexto neoliberal, um termo usado com pouco apuro histórico e sociológico na maioria dos estudos. As pesquisas raramente se situam dentro da geopolítica das TICs em que os Estados Unidos são o centro originário e mais poderoso dessas plataformas, a China buscou criar uma versão paralela desse centro e potências como a Rússia optaram por usos estratégicos e políticos de conteúdos que circulam pelas plataformas. Nessa ordem global digital, navegamos como dependentes das plataformas norte-americanas, de equipamentos chineses e somos vulneráveis a manipulações políticas diversas, das psicométricas à já antiga desinformação.

Por fim, se compreendi bem o que se propõe no terceiro eixo, pode-se questionar a existência de uma teoria social nativa que organiza movimentos de luta político-culturais. Como mencionei antes, os eixos de demanda de redistribuição econômica e simbólica são resultado de tensões globais que originaram teorias e conceitos relativamente menos restritos ao centro e, mesmo que com limitações, em necessária relação com o "Rest". Tais teorias e conceitos estão se construindo e reconstruindo nas fronteiras, nas tensões e nas reconfigurações geopolíticas e nas novas relações de economia política do conhecimento. Nesse movimento, ouso sugerir que somos vanguarda, pois enquanto produzimos em diálogo com o Norte até hoje teóricas de lá mencionam, mas tangenciam a citação e o engajamento em diálogos conosco, do Sul Global. Recentemente foi publicada a tradução para o português de um artigo de Judith Butler em que ela faz uma defesa da tradução do conceito de gênero a outras realidades, mas não cita e tampouco se engaja em diálogos com pesquisadoras que fazem isso fora do eixo euro-estadunidense.

No que se refere ao campo de pesquisas sobre diferenças de gênero, sexualidade e raça, estamos em um diálogo criativo com eles e elas do Norte assim como com nossos pares de outras partes do globo criando pesquisas e reflexões que, inevitavelmente, demandam adaptação ao nosso contexto sem que se tornem teorias "nativas", não por nossa incapacidade, mas porque elas se relacionam a questões que não se restringem a fronteiras nacionais ou apenas locais. Nosso trabalho tem sido, ao mesmo tempo, de tradução e de provincialização das teorias e conceitos que a economia política do conhecimento insiste a alçar à universalização. Portanto, considero que - no presente e na perspectiva de quem lida com diferenças - nosso trabalho talvez não se resuma a criar algo nativo ou local, envolvendo o desafio de nos inserirmos em um diálogo crítico que permita a construção compartilhada de teorias e conceitos mais plásticos, ao mesmo tempo afeitos ao intercâmbio e à tradução.

Além disso, cabe sublinhar que os usos das redes atualmente delimitados pelas plataformas de rede social comercial têm pouca margem para ressignificação. Efetivamente a esfera pública foi ampliada pelas TICs, o que é lido por alguns como algo democratizante, mas tal ampliação do engajamento político no espaço público também trouxe consigo efeitos autoritários, individualizantes e conflitivos. Tais plataformas induzem algoritmicamente as interações, criam colapsos contextuais que tendem a causar desentendimentos e confrontos. Mas a este aspecto tecnológico, deve-se somar também a forma como molda midiaticamente os embates políticos, por exemplo criando uma economia do reconhecimento substitutiva, baseada mais no empreendedorismo e na competição pelo "protagonismo" em uma causa ou movimento do que na criação de redes de solidariedade ou apoio afeitas à ação coletiva, ao menos como a compreendíamos antes da internet.

5Na esfera pública técnico-midiatizada, portanto sob controle de um oligopólio baseado no Vale do Silício, moldada por algoritmos e lógicas midiáticas que delimitam o debate público e as formas de agência política, há pouco espaço para agência coletiva orquestrada por interesses comuns e maior incentivo a uma forma de individualismo em rede que, de forma aparentemente paradoxal, gera comportamentos de manada e autoritarismo. Como analisei em Batalhas Morais, no campo dos embates por reconhecimento, as lutas moldadas pela esfera pública técnico-midiatizada têm ampliado as vozes e o apoio aos contrários à igualdade e gerado vigilância e punitivismo comportamental e vocabular entre os que buscam reconhecimento. No extremo, assistimos cancelamentos on-line e a escrachos no off-line, expressões gêmeas de práticas violentas que buscam eliminar o divergente sob a escusa de se lutar por justiça social.

6Em suma, algumas das características da sociedade brasileira de fins do século XIX se reatualizam no cenário digital moldando todo o espectro político, até posições políticas antagônicas. Não se trata de mera continuidade. Devemos desconfiar de diagnósticos interpretativos que afirmam que a sociedade brasileira é assim ou sempre foi assim. O novo sempre vem e o contexto atual é, com o perdão do que pode soar obviedade, resultado da história e também do circunstancial. Em outros termos, o autoritarismo e conservadorismo das nossas elites do século retrasado influencia, mas não é o mesmo que grassa atualmente na nova esfera pública e que precisa ser visto como novo objeto de investigação científica.

Bibliographie   

MACHADO, Jorge ; MISKOLCI, Richard, "Das jornadas de junho à Cruzada Moral : o papel das redes sociais na polarização política brasileira", Sociologia & Antropologia. Rio de Janeiro : PPGSA-UFRJ, v. 9 n.3, 2019, URL : https://www.scielo.br/j/sant/a/q8zsjyJYW3Jf3DBFSzZJPBg/ ?lang =pt

MISKOLCI, Richard, Batalhas morais : política identitária na esfera pública técnico-midiatizada, Belo Horizonte : Autêntica, 2021.

MISKOLCI, Richard, Desejos Digitais : uma análise sociológica da busca por parceiros on-line, Belo Horizonte : Autêntica, 2017.

MISKOLCI, Richard, "Sociologia digital : notas sobre pesquisa na era da conectividade", Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos : PPGS-UFSCar, 2016, v.6 n.2, 2016. URL : https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/525 http://dx.doi.org/10.4322/2316-1329.014

MISKOLCI, Richard ; BALIEIRO, Fernando de F., "Sociologia Digital : balanço provisório e desafios", Revista Brasileira de Sociologia. Porto Alegre : SBS, v.6, n.12, pp. 132-156, 2018. URL : https://doi.org/10.20336/rbs.237

Citation   

Jair de Souza Ramos et Renan Alfenas de Mattos, «A digitalização do desejo: entrevista com Richard Miskolci», Cultures-Kairós [En ligne], mis à  jour le : 12/04/2023, URL : https://revues.mshparisnord.fr:443/cultureskairos/index.php?id=2011.

Auteur   

Jair de Souza RamosRenan Alfenas de Mattos