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Às margens do Lago-de-Leite.Viagens xamânicas nas rodas de coca dos Hupd’äh (Maku) do Alto Rio Negro – AM

Danilo Paiva RAMOS
décembre 2016

DOI : https://dx.doi.org/10.56698/cultureskairos.1438

Résumés   

Résumé

Au coucher du soleil, lorsque le son du pilon commence à résonner dans le village des Hupd’äh, il est possible d’accompagner les hommes hup qui marchent lentement, en se saluant, et qui s’assoient sur leurs bancs pour former les cercles de coca. Au milieu des discussions, les hommes hup racontent des mythes, enseignent des bénédictions et commentent les marches en forêt à travers les sentiers. Une nuit, alors que nous parlions, un chien a traversé le centre vacant du cercle. Tous se sont efforcés d’écarter l’animal du « Lac-de-lait » qui se formait devant les hommes hup alors qu’ils parlaient, bénissaient et racontaient des mythes. Bénir et converser en cercle sont des actes qui font surgir un Lac-de-lait. Autour de ce lac, les hommes hup soufflent la fumée des cigarettes tout en racontant les histoires des anciens. Sur la base de la réflexion de Pradier, nous cherchons à comprendre comment la perception de ce paysage de la création de l’humanité, le Lac-de-Lait, articule, au cours d’un événement performatif, trois aspects : les corps qui agissent ; les corps qui perçoivent ; et la relation composite entre les corps des chamanes.

Abstract

When the sound of the crusher can be heard all over the village at sunset, the Hupd’äh seniors may be seen walking slowly while they greet each other and then sit on their stools to form the circles of coca. During their conversations myths are told, spells are taught and walks through the jungle paths are talked about. One night, while we were talking, a dog walked across the empty centre of the circle. All the participants hurried to drive the dog away from the Milk-Lake that was being formed in front of the hup seniors while they talked, blessed and told their myths. Blessing and talking in circles are actions that make the Milk-Lake arise. Around this lake, the hup seniors blow cigarette smoke around while they tell stories about their ancestors. Based on Pradier’s perspective, I try to understand how the perception of the scene of mankind creation, the Milk-Lake, articulates three aspects during the very performance: the bodies acting; the bodies perceiving; and the composition among the shamans bodies.

Resumo

Ao pôr do sol, quando o som do pilão começa a ecoar pela aldeia é possível acompanhar os passos dos senhores Hupd’äh (Maku) que vão caminhando vagarosamente, saudando-se e sentando-se em seus bancos para formar as rodas de coca. Em meio às conversas, mitos começam a ser contados, benzimentos são ensinados e andanças pelos caminhos da mata são comentadas. Uma noite, enquanto conversávamos, um cachorro atravessou o centro vazio da roda. Todos se agitaram para enchotar o animal do “Lago-de-Leite” que se formava diante dos senhores hup enquanto conversavam, benziam e contavam mitos. Benzer e conversar em roda são atos que fazem surgir um Lago de Leite. Ao redor desse lago, os senhores hup sopram a fumaça dos cigarros enquanto contam histórias dos antigos. Partindo da reflexão de Pradier, busco entender de que modo a percepção dessa paisagem da criação da humanidade, o Lago-de-Leite, em pleno evento performático articula três aspectos: os corpos agindo; os corpos que percebem; e a relação compósita entre os corpos dos xamãs.

Index   

Index de mots-clés : Hupd’äh, Maku, performance, chamanisme, coca.
Index by keyword : Hupd’äh, Maku, performance, shamanism, coca.
Índice de palavras-chaves : Hupd’äh, Maku, performance, xamanismo, coca.

Texte intégral   

1Para a realização dos encontros noturnos, os benzedores hup sentam-se em roda para o consumo de coca e tabaco sendo notável o vazio no interior do círculo. Uma noite, um cachorro atravessou o centro da roda. Todos se agitaram para enxotar o animal do que descobri ser um Lago-de-Leite que se forma diante dos senhores hup enquanto conversam, benzem e contam mitos. Partindo desse evento específico, busco descrever as analogias possíveis entre a viagem dos benzedores hup ao Lago-de-Leite para a cura e proteção e uma viagem que fizemos à Serra Grande para banhos rituais que purificam e endurecem o corpo. Para isso, toma-se os encontros noturnos como contextos que associam os fazeres mítico, onírico e xamânico a partir de uma performance, entendida como uma forma relacional particular que articula, gestualmente, modos de ação, temporalidades e campos de percepção distintos1.

2Procura-se delinear como esses modos de ação mobilizam sensorial e experiencialmente os participantes permitindo a interação com diversos seres, paisagens e perspectivas para a mediação em processos de transformação. Se « o palco só existe em função do olhar que o encara » (Pradier, 2013), ao justapor as experiências partilhadas dos participantes na roda de coca, pretende-se realizar uma « episteme dos olhares » dos benzedores e do pesquisador como sujeitos e observadores de percursos, paisagens e perspectivas que atravessam as rodas de coca através dos gestos, corpos e alinhamentos da atenção dos presentes.

Os Hupd’äh

3Os Hupd’äh habitam a região do Alto Rio Negro (AM) na fronteira entre o Brasil e a Colômbia. Suas comunidades situam-se às margens de igarapés da área interfluvial dos rios Tiquié e Papuri, afluentes da margem esquerda do rio Uaupés. Os dados demográficos mais atuais estimam a população num total de 1.500 indivíduos distribuídos em aproximadamente 35 aldeias (Athias, 2006; Epps, 2005). Atualmente, há algumas aldeias que agregam de 100 a 200 indivíduos, enquanto outras continuam concentrando de 15 a 50 pessoas como parecia ser o padrão habitacional descrito pelos pesquisadores (Reid, 1979). Os traços semelhantes entre as línguas Hup, Nadëb (kuyawi), Dâw e Yuhup constituem-nas como línguas irmãs, formando assim a família linguística Nadahup (Maku) (Epps, 2005). A estrutura social hup tem nos clãs agnáticos seus segmentos básicos de constituição e de diferenciação. O casamento preferencial dá-se entre os primos cruzados bilaterais em uma mesma geração, procurando respeitar certa hierarquia entre os clãs. Em contraste com outros povos da região, o sistema de matrimônio dá-se segundo a endogamia lingüística e a exogamia clânica. O casamento dá origem a grupos de fogo, unidades mínimas de produção e consumo, cuja tendência de fixação é virilocal, mas é comum haver a residência uxorilocal (Reid, 1979; Athias, 1995).

4O contato teve inicio com as frentes de colonização desde o século XVIII, mas foi apenas nas décadas de 1960 e 1970 do século XX que os missionários salesianos iniciaram atividades mais intensas visando à envangelização e à escolarização dos Hupd’äh. Paralelamente a isso, observou-se a dificuldade crescente na obtenção de alimentos, o aumento na taxa de mortalidade e de doenças, e o constante recrutamento e exploração de mão de obra para atividades extrativistas (borracha e cipó) (Athias, 1995; Reid, 1979). Nas últimas décadas, as atividades das equipes de saúde, de indigenistas, e de missionários pentecostais vêm somando-se à ação dos salesianos. Recentemente, vem ocorrendo o aumento intenso do fluxo periódico de famílias Hupd’äh e Yuhupdëh com destino ao centro urbano de São Gabriel da Cachoeira-AM. Essas famílias vêm sofrendo com os problemas decorrentes da forma de permanência no município por estarem expostas a condições adversas de alojamento e permanência (precariedade/insalubridade nas instalações) e a alta vulnerabilidade social.

Às margens do Lago-de-Leite

5Ao pôr do sol, quando o som do pilão começa a ecoar pela aldeia é possível acompanhar os passos dos senhores hup que vão caminhando vagarosamente, saudando-se e sentando-se em seus bancos para formar as rodas de coca. Enquanto a fumaça dos cigarros de tabaco tateia os ares noturnos, o pó verde da coca (erythroxylum coca) vai sendo derramado nas bocas. Em meio às conversas, mitos começam a ser contados, benzimentos2 são ensinados e andanças pelos caminhos da mata são comentadas. Murmurando palavras para cigarros ou cuias, alguns dos participantes executam ações xamânicas para curar ou proteger pessoas. Ao sentar-me com os Hupd’äh entendi que os encontros noturnos podem ser vistos como uma performance que permite aos participantes constituírem percursos de observação a partir de seus próprios movimentos em meio às palavras sopradas dos encantamentos, às narrativas míticas e aos passos trilhados pelos caminhos que atravessam a floresta.

6Durante um encontro noturno, depois de estarmos todos sentados em roda comendo coca, um cachorro atravessou o espaço vazio dentro do círculo de um lado a outro. Os presentes começaram a erguer seus braços como se fossem bater no animal e a gritar irritados: -/Mo̗h pã̖, Mo̗h pã̖!/, « no lago não, no lago não! », até que o cão saiu correndo assustado. Surpreso, perguntei a eles por que tinham afastado o canino daquela forma. Foi então que Samuel me contou sobre os Lagos-de-Leite que se formam quando os velhos estão sentados conversando ou benzendo.

No centro da roda forma-se um /Pud-Dë̖h Mo̗h/, um “Lago-de-Leite” quando os velhos estão sentados conversando ou benzendo. Também no centro da /Ä̗g-Mo̖y/, “Maloca”, forma-se um Lago-de-Leite quando todos estão bebendo caxiri, cantando e dançando. As flautas jurupari circulam em volta do Lago-de-Leite que se forma na Maloca quando são tocadas. Uma das portas da Maloca é aberta para a /Dëh K’et-Yoh Mo̖y/, “Casa da Cabeceira”, e a outra para /Dëh Sa̗ka̗n Mo̖y/, “Casa do Sol Nascente”. Os troncos que sustentam o telhado da Maloca são como as serras e o telhado é como o céu.  

7Os cachorros, muito valorizados para a caça e acompanhamento nas caminhadas, são correntemente enxotados das rodas. São eles que trazem os bichos-do-pé, que procuram o calor das cinzas de imbaúba3 para deitar-se e que podem, farejando, derrubar a cuia de coca e atrapalhar o encontro. Seus latidos e lambidas repentinas impedem a concentração, o benzimento e as conversas. São seres que precisam ser afastados para longe do convívio dessa forma de interação, pois seus movimentos e ações tornam-se incompatíveis com os afazeres dos encontros. Indesejados e impuros no sentido de Douglas (1976), os cães são afastados e tornam-se seres marginais, potencialmente perigosos por serem fontes de predadores minúsculos, os bichos-do-pé4, e por ameaçarem a boa sequência das ações dessa forma relacional.

8Benzer e conversar em roda são atos que fazem surgir um Lago-de-Leite. Ao redor desse lago, os senhores hup sopram a fumaça dos cigarros enquanto contam histórias dos antigos. Enquanto sopram os cigarros benzidos, os xamãs dizem viajar ao Lago-de-Leite, rio abaixo, /mer’ah sö̗’/, local onde a humanidade surgiu após o chamado de /K’e̖g-Tẽh/, onde os ancestrais receberam seus poderes e de onde partiram navegando dentro da Cobra-Canoa. É a partir das ações que desenvolvem no curso dessa jornada que os benzedores moldam os cigarros transformando-os em instrumentos de cura ou proteção.

9Como contou Samuel, as conversas em meio à circulação das panelas de caxiri também fazem surgir um Lago-de-Leite na maloca. De forma semelhante, a dança e toque das flautas jurupari cria um Lago-de-Leite, ao redor do qual todos circulam. Em meio a atos de palavra, sopro e dança, o Lago-de-Leite emerge como uma poderosa paisagem de vida que estabelece a presença imanente do espaço-tempo da criação, da dádiva e da possibilidade de cura, proteção e regeneração. Partindo da reflexão de Pradier (2013), é possível dizer que a percepção dessa paisagem da criação da humanidade, o Lago-de-Leite, em pleno evento performático articula três aspectos: os corpos agindo; os corpos que percebem; e a relação compósita entre os corpos dos xamãs. Citando Pradier (2013):

a)     Um corpo agindo, o do performer, cuja intimidade psicossomática escapa a toda percepção externa, enquanto que a consciência do corpo, pelo próprio sujeito, é eminentemente variável. [...]

b)     O corpo que percebe é aquele do espectador, testemunha, observador, que fabrica nele mesmo a imagem que ele tem do corpo agindo, percebido. [...]

c)     Enfim, é indispensável levar em consideração a relação compósita, mais ou menos tênue ou densa, que se estabelece ou não entre os corpos. Relação dual em uma situação de tête-à-tête. Relações múltiplas quando o evento é vivido coletivamente no seio de uma comunidade, mesmo que essa seja efêmera. Trata-se de uma relação simbiótica, no sentido estrito do termo sumbiotikoV: o vivo [le vivant] (bios) em conjunto (sun). Longe de se reduzir às únicas formas da partilha do pathos sugeridas pelas palavras de empatia, simpatia ou antipatia, a relação simbiótica é ao mesmo tempo passiva e ativa, flutuante e oscilante (Pradier, 2013, p. 107).

10As analogias entre os movimentos e gestos dos benzedores durante a roda de coca, na execução de encantamentos, ao longo de uma viagem que fizemos ao morro sagrado da Serra Grande permitirá entender melhor de que modo a ação (corpo que age), a percepção (corpo que percebe) e a mobilidade compósita (relações múltiplas no evento vivido mutuamente) constituem os xamãs hup na fala, na roda de coca e na viagem como seres transicionais que atuam entre paisagens e temporalidades corporificadas.

Viagem à Serra Grande

11O dia estava bom para viajar. Samuel veio logo cedo à casa de Américo para dizer que a chuva parara e que podíamos sair. Fomos então preparar as coisas para a viagem. Enfrentaríamos uma trilha com lama, /ti̗ti̗/, “suja” no dizer de meus companheiros. Os dias anteriores tinham sido de muita chuva e, por isso, todos iam com suas botas calçadas. Pegamos nossas mochilas, jamaxins5, arcos, terçados, anzóis e sacos de farinha e partimos. Tomamos um caminho a noroeste da aldeia. O intervalo entre as fileiras de árvores é largo enquanto conduz às roças espalhadas às suas margens, mas o caminho largo das roças ia estreitando-se à medida que entrávamos nos /hup ti̖w/, « caminhos de hup ».

12Três dias depois de iniciada a caminhada, começamos a subir o morro de /Paç Pög/, a « Serra Grande », para onde viajam as almas após a morte. /Na̗w sa̗p, Na̗w kɨ̗d/, « Muito bom!, Incrível! » eram as falas de admiração de todos quando paramos na metade do morro para descansar. Em meio ao suor, os sorrisos acompanhavam os olhos arregalados, contemplando a beleza da paisagem que surgia. As serras de Mitú, na Colômbia, erguiam as árvores ao longe. Aos poucos fomos pisando e experimentando a superfície plana onde arbustos e pedras disputavam espaço. O morro pertencia a /Sokw’at I͂h/, ancestral hup que era o /Paç Pö̗g yo’o̖m ĩh/, o « dono da Serra Grande ».

13Uma leve brisa soprava. Nossos pés exploravam os vãos da rocha negra. Chegamos a um miradouro. Com nossos corpos erguidos, passeávamos os olhos pela paisagem que se abria diante de nós. /Kë̗y w’ë̗h hisa̗p/, « Vê-se muito longe! », exclamava Samuel. /Dëh Säk Mo̖y Paç/, a Casa-da-Serra-da-Cabeceira6, dizia reconhecendo a imensa serra que víamos. Em seu tempo de garimpo, ele fora para lá tirar ouro. Um imenso tapete verde esparramava-se ao pé da serra. /Tëg d’uh si̗m’eh, si̗meh/, « as árvores são pequenas daqui, todas pequenas », dizia Mandu que tinha vindo acompanhar seus cunhados pela primeira vez. Ele apontava para frente mostrando que ao sul estava o rio Tiquié, ao norte o Papuri, a oeste o Uaupés. Mais acima avistávamos as /Ya’a̗m-Huh/, Cachoeiras de Iauaretê. Lá do alto contemplávamos o mundo em miniatura.

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Mandu olha para a /Paç Tẽ̖h/, “Serra Pequena” (© Danilo P. Ramos, 2012)

14Aproximando-se da beira, Lucas respirou fundo, abriu bem a boca e lançou um forte grito que se espalhou por todo o universo à nossa frente: /ÊÊÊÊÊ/. As ondas sonoras reverberavam e espelhavam ecos: /êêêêê/. « Tem gente ali, tem gente ali »,  Mandu apontava para o meio da selva de onde pareciam vir os ecos. A visão de longe, em perspectiva, era também uma possibilidade de audição em perspectiva. Em seu grito e no comentário de Mandu, de certo modo, a gênese da humanidade era retomada. No /Pud dë̖h mo̗h/, no Lago-de-Leite, /K’e̖g th/ gritou e a humanidade respondeu. « E foi assim que surgiram os Hupd’äh », contou-me Miguel em uma roda de coca semanas antes.

15Fomos, então, procurar pelos « lagos/ poços de banhar », /s’o̗m ho̗y/, que ficavam do outro lado do morro. Demétrio foi o primeiro a chegar. O lago estava com água. Ele tirou suas sandálias, sua camiseta e foi para a beira preparar-se para o banho. Vagarosamente pôs-se de cócoras, abriu as palmas das mãos, movimentou-as em direção ao espelho d’água, umedeceu-as e levou-as para o peito, para o centro do /hã̗wäg/ para lavá-lo7. Depois levou a água até seu rosto, braços, pernas, pé. Sempre de modo leve e delicado. Estava concentrado e silencioso quando chegamos. Olhou para nós, sorriu e pediu que eu tirasse uma foto dele se banhando. Todos começaram a tirar suas botas e camisas e foram banhar-se com a água do lago, um de cada vez. Quando fui me banhar, explicaram-me que havia dois lagos contíguos, um para o banho das mulheres e o outro para o banho dos homens. Eu deveria molhar minhas mãos no lago masculino para refazer meu corpo. Samuel fotografou-me e todos riram muito do « banho do branco ».

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O banho de Demétrio (© Danilo P. Ramos, 2012)

16« Se banhar, tem que voltar de novo, senão vai morrer já », lembrava Mandu enquanto nos lavávamos. As águas que refazem o corpo são as mesmas que o deixam fraco e doente. Com o banho todos nós esperávamos ficar com a pele dura, /tab’a̗’/, como uma casca de árvore, com os ossos fortes e com o corpo novo. Como disse Natalino enquanto banhava-se, /ɨ̗n pɨ̗b ĩh ni̗ tëg, wähä̗d nɨ̗h/, « todos ficaremos jovens até a morte, não envelheceremos ». Mas para isso tínhamos que retornar uma segunda vez à Serra Grande e banhar-nos novamente no lago. Lucas jogou um cigarro dentro das águas. Como fiz menção de retirá-lo, ele riu e contou que estava deixando esse cigarro para os antigos, /tɨ̗h wähä̗d’äh nɨ̖h hũ̖t/. Era uma oferenda para aqueles que, como Demétrio, tinham ido muitas vezes banhar-se na Serra Grande. Entendo que essas ações realizam uma intervenção sobre a matéria que recria o corpo em banhos que são como passagens entre vida e morte (Viveiros de Castro, 1979).

17Um dos principais objetivos durante a viagem à Serra Grande era o de subir o morro e banhar-se nas águas dos lagos para refazer o corpo, endurecendo a pele e os ossos para que  « todos fossem jovens até a morte ». A analogia possível entre o «chamado de Lucas » e o « chamado de /K’e̖g Th/» no surgimento da humanidade permite entender a percepção do lugar como lócus de uma cosmogênese. O fortalecimento do corpo, a purificação do sopro vital, a atenuação do envelhecimento e a morte iminente apontam para a importância do modo de interação com esse espaço em termos de ações ritualizadas8 (Humphrey; Laidlaw, 2004). O lago é dividido em uma metade masculina e outra metade feminina. Para banhar-se a pessoa acocora-se, encosta suavemente a palma da mão no centro do lago e, em seguida, passa a mão umedecida no peito, morada do sopro vital, e depois nos braços.

18Um processo de condensação ritual passa a ocorrer através desses procedimentos que situam a busca pela purificação do sopro vital e do fortalecimento do corpo. Um jogo de identificações com os antigos e com elementos presentes naquele espaço passou a ganhar maior densidade, situando uma modalidade particular de ação (Houseman & Severi, 2009). Com os banhos dos presentes e a enunciação de certas regras e interdições começa a delinear-se uma sequência articulada de ações que são repetidas de forma semelhante por todos.

Benzimento do tabaco

19Foi numa tarde de julho de 2011 que Ponciano veio benzer-me para que eu pudesse fumar tabaco e comer coca sem me preocupar com os perigos do consumo dessas substâncias. Ele preparou o cigarro com um pouco do tabaco desfiado enrolado num pedaço de folha de caderno. Depois de uns quinze minutos, Ponciano entregou-me o cigarro, dizendo que, daí em diante, eu estaria protegido das essências ruins desses alimentos. Poderia participar tranquilamente dos encontros noturnos.

/Hũ̖t bi’i̖d/ Benzimento do tabaco9

1º mov.(Com.)Eu dou o cigarro para melhorar a vida, para não morrer. Você vai entender! Um dia você vai ouvir: « Primeiro, quem fez isso foi o /K’e̖g-Tẽh/». Aqui, a vida termina para os jovens crescerem. Nossa vida termina para os jovens crescerem. Nosso corpo não aguenta mais agora, está velho. /K’e̖g-Tẽh/ falou: « Vocês vão ter o corpo bom! » Por isso, hoje em dia, se não fazemos tabaco, os jovens não crescem. Fazemos o tabaco para os nossos jovens ficarem fortes e crescerem. Nós morremos quando não tem tabaco. [...] Se a gente não faz esse cigarro benzido a doença encontra a gente nessa terra.

Eu tiro o tabaco da /Nute̖ne̖y-Mo̖y/, nossa casa de origem. Acompanho e tiro das casas /Dëh-Sa̗k-Sö̗’ö̗y-Mo̖y/, /Hak-Te̖ne̖y-Mo̖y/, /Dëh-K’et-Sö̗’ö̗y-Mo̖y/. Eu vou tirando o nosso /hã̗wäg/. Sento-me em meu banco da vida, nosso banco do Lago-de-Leite.

Troco o cigarro, sentado no banco da vida, no banco do Lago-de-Leite. Troco o cigarro com meu ser sentado no banco. Troco o bastão e sigo trocando (continuamente). Tiro e vou reunindo. Meu /hã̗wäg/ todo, eu tiro e vou levando. Falo e vou tirando a vida dos /Sokw’ä̗t Noh K’öd Tẽ̖h däh/ e minha própria vida (dessa morada).

Eu falo e menciono para nossos ancestrais, para os /Sokw’ä̗t i͂han/, os /B’ö̖’ Te̖͂h i͂han/, /Su̗g Yom’o̖y Tẽ̖h ĩh/, /So̗Tẽ̖h  ĩhan/, /Yë̖w Tẽ̖h ĩhan/, /S’ẽ̖h (Sẽk?) Tẽh i͂han/, /Hõ̖p Tẽ̖h ĩhan/, /Poho̗t Tẽ̖h ĩhan/. (Menciono) o  cigarro, o banco da vida, o chapéu, o bastão deles. Com isso eu pego o bastão. (Reúno esses poderes) para lá, no Lago-de-Leite, lá no fundo, no final, no Rio de Janeiro.

2º mov. Vou para dentro da casa com a roupa do aracú pequeno. Entro e fico em pé com o /hã̗wäg/, o espelho, a espinha, o cigarro (do aracú pequeno). Entro e fico em pé com seu cigarro. Sopro a fumaça do tabaco.

(Com.)A fumaça do tabaco é pari dentro da gente. Vou benzendo com o breu. A fumaça do breu é pari para dentro do corpo. Faz com que as Cobras não vejam.

Entro com meu sopro vital. Fico em pé. A doença passa com o cigarro. Falo para esse aracu pequeno, para aquela gente de trás do lago, para aquela gente de acima do lago (k’ë̗t), para a Cobra do outro lado do lago (hak). Para aquela gente, eu menciono os aracus pequenos.

Fico em pé e sopro com os cigarros dos aracus para que essas gentes não apareçam com seus cigarros e para que as doenças delas passem com o cigarro. Essa fumaça do cigarro é pari para dentro. Eu faço o /hã̗wäg/ entrar e ficar em pé na casa dele (corpo).

(Com.)Fazendo isso, dizem que essas cobras não aparecem. [...] Outro dia nós vemos essa gente. [...]

3º mov. Retorno e falo para os aracus pequenos do Igarapé-Grande onde há essa gente do Igarapé-Branco (...). Entro e fico em pé com meu cigarro para que eles entrem em sua casa com seu cigarro, com seu sopro vital.

(Com.)Essa fumaça do tabaco é pari dentro do corpo para esconder o sopro vital. [...] Com esse cigarro, a doença passa, não aparece.

Falo para nossas crianças, para nossas mulheres, para nossas filhas. Menciono tudo para (proteger) essas pessoas. Eu menciono e tiro para os nossos parentes que acompanham.

4º mov. Falo para as Cobras. Vou chegando para cá. Menciono a cuia de mel da origem. Digo e faço vir a cuia de mel da origem. Menciono todas as Gentes - Cobra do lago. (Falo para) a cuia de mel da origem, para o sopro vital da cuia de mel da origem, (para) o corpo da cobra da origem (em sua) asa (?). Com essa asa, com a base da asa (dirijo-me) para dentro dessa morada. Faço o /hã̗wäg/ entrar e ficar em pé. Prossigo falando.

(Com.)Com esse cigarro, com essa fumaça do cigarro o sopro vital regenerado entra e fica em pé no corpo. Com essa fumaça, o /hã̗wäg/ de nossas crianças, de nossas meninas, de nossos filhos entra e fica em pé. Com esse cigarro, a doença passa, não aparece. (Desloco-me) na rede. (É preciso) entrar na rede e ficar enrolado. (Ajo com) o nosso banco para entrar, sentar e ver. [...] (Ponciano, gravação sonora de Patience Epps, 2011).

20Pajés e benzedores utilizam principalmente os cigarros de tabaco, /hũ̖t/, e o breu, /wõh/10, para a produção da fumaça. Os cigarros benzidos são preparados cotidianamente e seu consumo diferencia-se dos cigarros fumados para as conversas durante os encontros noturnos. Quando muitos senhores já se encontram sentados na roda, pessoas aproximam-se, dirigem-se a um deles e /bi’i̖d ih kë̗y/, « pedem um encantamento ». Para isso, contam das dores que eles próprios, seus filhos ou cônjuges sentem. Podem também explicar a viagem que farão, o sonho ruim que tiveram ou algo estranho que tenha ocorrido. No primeiro caso, será executado um /pëë bi’i̖d/, um « benzimento de cura ». No segundo, um /bi’i̖d ta̗’/, um « benzimento de cercar ». Para a cura, o benzedor procurará saber sobre os alimentos que foram consumidos, os lugares por onde a pessoa passou e que tipo de sonhos teve. Para cercar, é preciso saber qual caminho será percorrido, quem acompanhará e quais sonhos a pessoa tem tido. Esses diálogos permitem ao benzedor saber quais ações devem ser executadas ao soprar o cigarro, quais lugares e casas ele deverá visitar em sua viagem e com quais seres ele deverá interagir para acalmá-los ou evitar que se enfureçam. Selecionam-se as partes, os movimentos, as palavras que serão sopradas no cigarro, bem como o percurso a ser seguido durante a jornada.

21No encantamento do tabaco, o benzedor viaja para o Lago-de-Leite e « tira o tabaco » das Casas Ancestrais, ao mesmo tempo em que tira dessas casas os elementos para compor o “sopro vital”, /hã̗wäg/. Protegido das Cobras por sua rouba de aracu, ele retorna trazendo o tabaco e o sopro vital. A fumaça restitui a vida. Ela é pari para dentro,  envolve o sopro vital fazendo com que a pessoa hup fique em pé em seu corpo. Todas essas ações e interações ocorrem enquanto o benzedor está sentado, viajando com o pensamento-sopro vital, como pessoa-sopro, murmurando palavras e assoprando o cigarro.

22Quando traduzíamos o « benzimento do tabaco », Samuel explicou-me que o pensamento e o sopro vital são feitos de /hãg-sak/, « respiração/pulsação », /pud dëh/, « leite », e /yõh dëh/, « água-pura ». O sopro vital situa-se no peito, na /Hãg-Sak-Moy/, « Casa-do-Respirar/ Pulsar ». O pensamento localiza-se na cabeça, mais especificamente no ouvido. Dentro da « Casa-do-Ouvido », /B’otok-Moy/, ele situa-se na /b’otok-wäg/,  « semente do ouvido ». Da orelha, o pensamento estende-se até o peito e liga-se ao sopro vital por meio de fios muito finos chamados de /sap tiw/, « caminhos corporais ». Quando o benzedor se movimenta pelo cosmos, a porção líquida desses princípios vitais permanece no corpo e apenas a porção ar, sopro, viaja pelo cosmos. Portanto, a viagem xamânica torna-se possível através da reconfiguração de si como pessoa-sopro (pensamento-sopro vital) pela continuidade que atravessa o sopro, a fala, o leite e a água-pura, substâncias vitais mobilizadas pelas ações de sentar no banco e de andar pelos caminhos.

23No Lago-de-Leite o xamã tira o tabaco de cada uma das casas ancestrais para reestabelecer a vida do doente. Ao mesmo tempo, ele vai retirando o /hã̗wäg/ da pessoa dessas mesmas casas para /hikad ni̗/, « trocar » a vida. Sentado em seu « banco-de-leite », /pud-kä̖d/, designado também como « banco da vida », /ɨ̗b’-kä̖d/, o benzedor troca com os ancestrais dos diversos clãs agnatos o cigarro, o bastão e o chapéu. Essa substância e os ornamentos são reunidos e depois levados na viagem de volta. Para entender melhor esse processo de regeneração da pessoa hup que se dá com a retirada do /hã̗wäg/ e do tabaco das casas, e a formação de Lagos-de-Leite durante as rodas de coca, creio ser importante descrever em que medida a paisagem do lago se configura como um campo de percepção e ação11.  

Lagos e cercas

24Os Hupd’äh denominam /k’ɨ̗/, « verões », os períodos em que há poucas chuvas e diminui o volume dos rios e igarapés. Esses verões são mais longos e intensos no período de setembro a novembro12, e mais curtos no restante do ano. São marcados por mudanças significativas na hidrografia regional e têm um papel relevante para a pesca. Com a diminuição das chuvas nas cabeceiras, /k’et-yoh/, de onde escorrem as águas para abastecer o leito dos rios, os igarapés tornam-se mais estreitos. O menor fluxo das águas faz surgirem lagos que represam grande quantidade de peixes. Boa parte da reprodução dos peixes ocorre nesses lagos e é comum ouvir comentários dos pescadores hup comparando esse momento a uma grande festa dos peixes, a um Dabucuri com danças, cantos, caxiris e namoros.

25Nesses períodos, muitas famílias deixam a aldeia para constituir acampamentos de pesca ao longo dos igarapés, rios e lagos da região. Retomando o benzimento do tabaco, elas viajam aos lagos, num sentido próximo à viagem do benzedor ao Lago-de-Leite. Os lagos, que represam os peixes, os cercam e a vida regenera-se através da reprodução. Isso faz com que as famílias obtenham grande quantidade desse alimento. O excedente é moqueado para a conservação e para a troca com outros parentes. Quando possuem cachorros, as famílias levam-nos para que farejem e persigam animais pelos caminhos e arredores do acampamento. Diferente do modo como são tratados na aldeia, os « cães-caçadores » recebem partes indesejadas de carne ou restos de peixe. Podem também manter-se mais próximos a seus donos sem ser enxotados.    

26Com o reinício das chuvas desfazem-se os lagos e iniciam-se as piracemas, a subida dos peixes rio acima, muito favorável à pesca com arco-e-flecha, timbós13, malhadeiras, matapis e paris14. Os paris, /b’e̖’/, são armadilhas em forma de cerca. Preparadas a partir de varas de paixiubinha e trançadas com cipós de arumã (/moho̖y yu̗b/), essas armadilhas são dispostas ao longo do curso do igarapé para apresar, cercar o peixe. Nos intervalos da pesca com anzol, o pescador arma o pari fixando-o no leito do igarapé. Dirige-se a outros pontos do córrego para continuar sua pesca com anzol enquanto os peixes vão acumulando-se no pari. Assim como os lagos, impede-se a passagem dos peixes, represando-os e envolvendo-os.

27« Cercar », /ta̗’/, é o modo como os benzedores hup designam o procedimento de criar envoltórios em torno de pessoas, lugares e princípios vitais. Num momento, do encantamento do tabaco, revela-se que “a fumaça é pari para dentro”, para cercar o /hã̗wäg/, fazer com que uma estrutura dura envolva o sopro vital e torne invisível a pessoa hup às Cobras15. Envolve-se o sopro vital da mesma forma como os paris e os lagos envolvem os peixes, alimentos necessários à vida. De modo interessante, no Benzimento do Tabaco, a roupa de aracu, um dos peixes mais pescados e moqueados durante os verões, protege o xamã, envolve-o, cerca-o.

28Os lagos, os paris e a fumaça dos cigarros ajudam a ver como as formas e os gestos necessários à ação xamânica de cercar emergem do processo vital na interação com as mudanças climáticas, com o comportamento dos animais, com o manuseio dos instrumentos de trabalho e com o consumo de substâncias16. A fumaça do cigarro faz-se especialmente importante, pois cria uma barreira circular que oculta o lugar ou a pessoa da visão dos seres maléficos.

Viagens ao Lago-de-Leite

29Tirar o /hã̗wäg/, « sopro vital », e o tabaco das quatro casas aponta para a associação fundamental entre o princípio vital e essa substância. Como contou Samuel certa vez, a /sopro vital/ é composta por água-remédio, leite e sopro. Banhando a pessoa com a água do Lago-de-Leite, composta também por leite e água-remédio, o benzedor troca e renova esses princípios vitais. Ele fuma o tabaco em seu banco-de-leite para criar um pari e cercar o /hã̗wäg/. O banho no lago da serra purificava e renovava o /hã̗wäg/ ao mesmo tempo em que tornava a pele e ossos estruturas duras, /ta’ba/ que, como um pari de fumaça, cercavam nossos princípios vitais.

30À luz do comentário de Samuel, creio poder dizer que, depois de nossa caminhada, enquanto nos banhávamos no alto da serra, um Lago-de-Leite tenha igualmente surgido para que nós, como nos encantamentos, regenerássemos a vida. Mas o banho na serra traz doença e morte se for tomado apenas uma vez, por isso deve haver um retorno para que o rejuvenescimento se torne efetivo. Suponho que o risco da viagem única diga respeito ao perigo da analogia entre os viajantes e os mortos. Como dito acima, o /hã̗wäg/ viaja para a serra, ascende ao topo e depois parte para o céu, para a casa de /K’e̖g-Tẽh/. O /b’atɨ̖b’/, « duplo-sombra », viaja para o subterrâneo. A separação definitiva dos princípios vitais atesta a morte como um “não retorno” e uma “não junção” desses princípios vitais no corpo. Já os xamãs, preparando o corpo, comendo coca, fumando e banhando-se vão e retornam, encontram-se com os ancestrais, trocam com eles, conversam, e voltam a seus corpos, a seus bancos, a suas casas, a suas rede. « Viajar como os mortos » talvez gere o perigo de partilhar com eles seus destinos e não retornar da viagem.

31Na segunda viagem, o andarilho está pronto para beber a água do lago e sonhar como quando se bebe caarpi. Isso evidencia a dimensão de iniciação xamânica do percurso, completa quando o andarilho consegue beber a água do lago dos ancestrais, aproximando-se deles para aprender encantamentos, mas, ao mesmo tempo, consegue retornar à sua casa, ao seu corpo, à sua aldeia. Ao voltar do Lago-de-Leite, o xamã faz o sopro vital ficar em pé novamente dentro do corpo do doente, fora da rede, desperta. Num dado momento do encantamento, o benzedor diz: « para cá eu vou chegando », expressão que explicita a viagem xamânica realizada durante o ato de benzer e a importância do deslocamento e do retorno. Da mesma forma que os encantamentos não são apenas fórmulas verbais, os cigarros benzidos não são usados apenas para a comunicação com outros seres e ancestrais. Manejando o tabaco, o sopro, as palavras e as posturas corporais como potências primordiais, os senhores hup viajam, movimentam-se, agem, para comunicar-se e interagir com esses Outros. O modo como se dá essa forma de mobilidade e não apenas a comunicação que ela proporciona, é fundamental para entender a agência xamânica suscitada pelas rodas de coca.

32Conversando com Mandu sobre nossa viagem à Serra Grande discutíamos como tinha sido difícil e demorado o percurso. Ele então disse que havia duas formas de viajar e de movimentar-se: /sa̗pa̗t/,  como pessoa-corporificada, e /hã̗wäg ha̗m/, como pessoa-sopro (sopro vital que vai). Comentava, rindo, que a viagem pelo caminho, como pessoa corporificada, demora muito e é muito difícil. Já a viagem em benzimento ou sonho, com o deslocamento como pessoa-sopro é rápida: « não demora, chega logo ». Nos encontros noturnos, o Lago-de-Leite forma-se diante dos benzedores sentados em círculo e fumando tabaco, deslocando-se como pessoas-sopro à paisagem da criação para banhar, tirar e juntar a pessoa. Simetricamente, caminhando rumo à serra, viajávamos como pessoas-corporificadas rumo a um Lago-de-Leite para, como os benzedores, nos banharmos e regenerarmos a vida.

Considerações finais

33O lago diante de si e o lago de destino envolvem cada participante na essência da totalidade de suas relações. É através do movimento corporal da pessoa sentada e viajando pelo cosmos (/hã̗wäg ha̗m/), ou do percurso da trilha para a Serra Grande (sa̗pa̗t) que essa paisagem é experienciada como um nexo em si, distinto de outros. As rodas de coca e a viagem à Serra Grande mostram-se práticas performáticas imersas nos afazeres diários (Pradier, 2001). O ato de caminhar para a Serra Grande refaz as trilhas e regenera a pessoa através dos banhos. A viagem xamânica ao Lago-de-Leite socializa com os atos de mostrar as casas, os ornamentos, as paisagens. Entendendo o conceito de paisagem de um modo amplo, como um campo de percepção e ação atravessado por perspectivas, a roda de coca, o Lago-de-Leite e a Serra Grande podem ser vistas como paisagens que se interpenetram através das ações dos xamãs, de seus deslocamentos, de suas palavras e de seus gestos.

34O cachorro que atravessa o lago torna-se um elemento indesejado já que se está compondo, coletivamente, uma paisagem que atualiza o espaço-tempo do surgimento da humanidade, da dádiva do cigarro/ coca e da reciprocidade entre a pessoa hup e seus ancestrais através de uma sequência de ações que pode ser afetada pela presença canina.  Estendendo-se continuamente até o lócus de surgimento da humanidade, essa paisagem parece não ter contornos delimitados como um palco ou um cenário. Ao mesmo tempo, os gêneros do discurso enunciados pelos participantes (encantamentos, mitos, sonhos) surgem menos como interrupções no fluxo das conversas cotidianas, e mais como trilhas, percursos narrativos soprados para o deslocamento dos xamãs para outros planos-casa.  Assim, a temporalidade, espacialidade e discursividade dos encontros talvez não sejam marcadas pelas interrupções e marcações gestuais e linguísticas que geram enquadramentos (frames) que destacam a ação ou o evento narrativo do fluxo da vida social e do discurso (Goffman, 1974; Bauman, 1977), mas suscitadas pela intensificação da atenção que as pessoas voltam para seus gestos, posturas, palavras e percursos de modo a permitir deslocamentos mútuos e múltiplos para a interação com diversos seres e ancestrais em distintas paisagens.

35O Lago-de-Leite pode ser visto como uma paisagem que represa, que cerca os princípios vitais, para que a vida possa ser renovada. Tornando-o presente diante de si  durante a roda, os participantes estão cercando o entorno a partir dos princípios vitais das águas do lago (leite e água-remédio), das casas ancestrais às suas margens e dos ornamentos necessários às danças e rituais (B2). Enquanto paisagem, o Lago-de-Leite é a forma como os Hupd’äh experienciam e reconhecem os contornos por meio de relações criadas nas atividades práticas das rodas. Os paris configuram os contornos no curso da atividade pesqueira e a fumaça nos atos de benzimento.

36Menos um código e mais um vestígio, um rastro, a paisagem do Lago-de-Leite parece guiar o benzedor através de sentidos desse centro do mundo que se encontram imanentes e discretos durante os afazeres diários. Se « o palco só existe em função do olhar que o encara » (Pradier, 2013), as rodas de coca e o Lago-de-Leite podem ser vistas como cenários em perpétua expansão e retração, um campo de rastos que situam as pessoas no mundo, numa paisagem nodal onde as trilhas e as linhas dos movimentos de cada um se cruzam.  Comendo a coca e estando diante do Lago-de-Leite, os senhores hup nutrem-se com substâncias e palavras, crescem e fazem crescer, ao mesmo tempo em que são nutridos pelos ancestrais. Sentando-se nas rodas, as pessoas passam por linhas de movimento e troca de substâncias com os presentes, com os ancestrais e demais seres tecendo relações compósitas vividas mutuamente. Revelam-se, assim, os múltiplos estratos da experiência numa forma unificada, numa paisagem que orienta e abre o mundo para uma percepção melhor e mais aprofundada. Com a fumaça dos cigarros os senhores hup cercam a paisagem e a vida, delineando seus contornos a partir de suas viagens.

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Notes   

1  Descrevo as rodas de coca como sendo uma performance e tento delinear as sequências reflexivas de ações verbais e não verbais que, noite após noite, geram uma forma constante de interações (Turner, 1988, p. 81; Houseman; Severi, 2009).

2  Dentre as principais formas discursivas podem ser destacadas as “narrativas míticas”, /pɨnɨg/, que abordam desde feitos de heróis criadores do mundo até grandes feitos de ancestrais e antepassados recentes. A “linguagem dos benzimentos”, /bi’id ɨd/, abordada nesse trabalho, constitui um dos principais gêneros discursivos do xamanismo hup. As práticas de cura e proteção são executadas por benzedores e xamãs que dominam essa forma de comunicação, marcadamente distinta da linguagem cotidiana pelo modo de enunciação (murmúrio e sopro), pelo paralelismo, e por complexas relações analógicas realizadas através de metáforas, metonímias dentre outras figuras de linguagem. Nas exegeses desses benzimentos, os narradores descrevem seus deslocamentos pelos diferentes planos cósmicos, suas metamorfoses e interações com seres humanos e não humanos com a finalidade de curar ou proteger. Opta-se pela tradução dos Hupd’äh da palavra /bi’id/ por “benzimento”em português, trazendo para o texto a força da analogia com o termo religioso do português regional. Nao considere a o parecer 1. O português local traz necessairamente consigo por razoes historicas a dimensao catolica/crista que acarreta a categoria benzimento/benzer/benzedores.

3  Para o consumo, as folhas de coca são assadas e em seguida piladas. O pó é misturado com as cinzas de folhas secas de imbaúba, queimadas para “temperar” a coca. Segundo os senhores hup, a imbaúba tempera a coca, salga para atenuar os efeitos do consumo cotidiano.

4  Os bichos do pé são considerados terríveis predadores dada sua capacidade de devorar a sopro vital da pessoa.

5  Estrutura semelhante à mochila para carregar peso, feita com cipós e madeira e tiras de casca de envira (árvore da família das anonáceas) para acoplar ao tronco e à cabeça do caminhante.

6  Trata-se, no caso, de uma tradução não literal feita por Samuel. A tradução literal ficaria próxima de: Casa-da-Serra-do-Igarapé-de-Trás.

7  /Hã̗wäg s’i̗d/, “lavar o /hã̗wäg/” é uma ação comum aos benzimentos.

8  O contraste entre ações ritualizadas e ações não ritualizadas ressalta a importância da atenção do agente para sua própria ação (Humphrey; Laidlaw, 2004, pp. 2-5).

9  O texto xamânico foi dividido em: movimentos (mov.), partes numeradas sequencialmente que correspondem a conjuntos de parágrafos descritivos sobre deslocamentos, gestos e formas de interação com entes em suas moradas, ações que devem ser realizadas pelos xamãs. Vez ou outra, o narrador interrompe o fluxo dos movimentos com comentários explicativos que permitem ao ouvinte entender aspectos importantes sobre o ser com o qual se deve interagir ou sobre a Casa onde as ações devem ser realizadas. Por isso, essas observações explicatívas são igualmente diferenciadas em parágrafos como comentários (Com.).  

10  O papel do breu para a criação de envoltórios de fumaça será analisado mais a frente.

11  Ingold (2000); Merleau-Ponty (2011).

12  De acordo com o índice pluviométrico do INPA (2012), os meses menos chuvosos estão compreendidos entre setembro e novembro quando a precipitação ocorre principalmente pela convecção local (p. 28).

13  Ramirez (2006), /d’u̖ç/, « timbó », termo genérico dado a grande número de plantas que têm propriedades ictiotóxicas, cipós que pertencem à família das papilionoídeas e sapindáceas. Pagina da referencia

14  Segundo dados pluviométricos do INPA (2012), o maior índice de precipitações ocorre entre os meses de abril e julho, havendo um contínuo aumento das chuvas no período de dezembro a março (p.29).

15  É interessante notar que em O cru e o cozido, Lévi-Strauss (2004) analisa o sopro da fumaça de tabaco lançada sobre um cercado de penas (p.111).

16  Ingold  (2000).

Citation   

Danilo Paiva RAMOS, «Às margens do Lago-de-Leite.Viagens xamânicas nas rodas de coca dos Hupd’äh (Maku) do Alto Rio Negro – AM», Cultures-Kairós [En ligne], paru dans Théma, mis à  jour le : 25/12/2016, URL : https://revues.mshparisnord.fr:443/cultureskairos/index.php?id=1438.

Auteur   

Quelques mots à propos de :  Danilo Paiva RAMOS

Danilo Paiva RAMOS é doutor em Antropologia Social (2014), e pós-doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (PPGAS-USP), membro do Núcleo de Antropologia da Performance e do Drama (NAPEDRA-USP) e do Centro de Estudos Ameríndios (CESTA -USP). É autor dos livros: Nervos da Terra: histórias de assombração e política entre os Sem-Terra de Itapetininga-Sp (Annablume, 2006) e Círculos de coca e fumaça: encontros noturnos e caminhos vividos pelos Hupd’äh (Hedra, no prelo). É também músico e desenvolve um projeto de arranjos e composições a partir de cantos xamânicos dos Hupd’äh. Atualmente assessora a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) em ações voltadas aos Hupd’äh e povos Maku, e milita pelo Fórum sobre Violações de Direitos dos Povos Indígenas (FVDPI).