- accueil >
- Les numéros >
- Capoeiras – objets sujets de la contemporanéité >
- Théma versions originales (portugais du Brésil) >
Discursos sobre a tradicionalidade da capoeira angola : a influência e o papel dos capoeiristas
Renata de Lima SILVA, José Luiz Cirqueira FALCÃO et Cleber DIASDOI : https://dx.doi.org/10.56698/cultureskairos.489
Résumés
Résumé
L'objectif de cet article est de clarifier et d'analyser certains aspects de la constitution des discours qui imprègnent l'univers de la capoeira angola : d'un côté, on trouve un discours populaire, en général porté par les capoeiristes, qui affirme, parfois sous l'influence des intellectuels professionnels, que la pratique exprime une ancestralité africaine ; de l'autre un discours plus académique, qui souligne qu'elle est une manifestation urbaine et moderne, codifiée seulement au XXe siècle. L'analyse de ces discours permet de déduire que le processus de construction et de transformation de la capoeira a été, hier comme aujourd'hui, une combinaison de croyances, de mythes et de discours d'origines diverses, populaires et académiques en même temps. Par conséquent, plutôt que de juger la véracité des discours sur la capoeira, nous voulons comprendre les conditions objectives qui les rendent possibles. Ainsi, la ritualisation qui symbolise l'héritage de Mestre Pastinha, le lien entre capoeira angola et pratiques afro-brésiliennes, ainsi que la gestualité même des capoeiristes, sont ici considérés comme quelques-uns des éléments qui concoururent à pérenniser les discours traditionalistes sur cette pratique.
Abstract
The objective of this paper is to clarify and analyse some aspects of the constitution of the narratives that permeate the universe of Capoeira Angola: on the one hand, a popular version gathered the capoeiristas themselves, where Capoeira Angola is conceived as a contemporary expression of traditional African practices ; on the other hand, a scholar version where Capoeira Angola is displayed as a modern and urban practice, yet only shaped in the XXth century. Our argument is that this dichotomy is a false question. The process of constitution and change in Capoeira happened, formerly and nowadays, through beliefs, myths and narratives from different origins, at the same time popular and scholar So rather than judging the truth of these or any other historical version about Capoeira, our objective, more specifically, is to reflect about the conditions that made possible those narratives. Thus, the ritualization that symbolized the transmission of a collective heritage for Mestre Pastinha, the connections between Capoeira Angola and others Afro-Brazilian practices, and finally the gesture of the capoeiristas, are pointed as some aspects that enabled to perpetuate those narratives of traditionality in this practice.
Resumo
O objetivo deste trabalho é explicitar e analisar alguns aspectos da constituição dos discursos que permeiam o universo da Capoeira Angola: de um lado, identifica-se a proeminência de um discurso de caráter mais popular, vinculado, em geral, aos próprios capoeiristas, mesmo que eventualmente influenciado por acadêmicos profissionais, que afirma esta prática como a expressão contemporânea de uma ancestralidade tradicional africana; de outro lado, um discurso de caráter mais acadêmico, que a destaca como uma manifestação urbana emoderna, codificada como tal apenas no século XX. Ao analisar aspectos desses discursos, podemos inferir que o processo de construção e transformação da capoeira deu-se, no passado e ainda hoje, pela combinação de crenças, mitos e discursos de origens diversas, populares e acadêmicas a um só tempo. Portanto, menos que julgar a veracidade desses ou de quaisquer outros discursos sobre a capoeira, interessa-nos compreender as condições objetivas que os tornaram possíveis. Assim, a ritualização que pretende simbolizar a transmissão de uma herança coletiva a Mestra Pastinha, a vinculação da Capoeira Angola a outras práticas afro-brasileiras, além da própria gestualidade de capoeiristas são apontados como alguns dos elementos que concorreram para viabilizar o discurso sobre a tradicionalidade desta prática.
Index
Index de mots-clés : capoeira angola, capoeira, histoire, culture populaire, culture brésilienne.Index by keyword : capoeira angola, capoeira, history, popular culture, brazilian culture.
Índice de palavras-chaves : Capoeira, História, Cultura Popular, Cultura Brasileira, Capoeira Angola.
Texte intégral
1No Brasil, ao tratarmos da capoeira, estudos históricos e crenças populares por vezes se contradizem no que diz respeito ao passado dessa prática. Estudos recentes têm argumentado que as diferentes capoeiras seriam, na verdade, manifestações urbanas e modernas, codificadas apenas no século XX (Soares, 2002 ; Pires, 2001 ; Vassalo, 2003). Segundo a abordagem desses autores, a consolidação dos estudos afro-brasileiros e o movimento nacionalista das primeiras décadas do século XX, incidiram na valorização da cultura popular, a partir de um paradigma em que manifestações culturais eram classificadas em termos de « tradição » e « degradação ». Nessas abordagens, a promoção da Capoeira Angola seria tão somente o resultado do desejo de uma elite letrada em exaltar uma imagem positiva do Brasil negro, donde a definição dessa capoeira como africana, tal como outros objetos ligados às identidades negras, decorreria menos de uma pesquisa cuidadosamente fundamentada do que de uma série de associações e semelhanças superficiais (Sansone, 2002).
2Capoeiristas, por seu turno, sobretudo os angoleiros, não raro compreendem sua própria prática olhando para África, clamando ancestralidade. Esta versão compreende os traços constituintes da capoeira – sobretudo a Angola – diretamente relacionada com cosmologias africanas de origem bantu. Tal como retratou Pedro Abib, nesse caso, destacam-se as « influências marcantes da cultura afro-brasileira », nomeadamente « experiências baseadas na tradição, na ancestralidade, no ritual, na memória coletiva, na solidariedade e num profundo respeito à sabedoria dos mais velhos » (2006, p. 87).
3Para os fins desse trabalho, não interessa negar ou ratificar nenhum desses postulados, mas apenas problematizá-los, com a intenção de compreender como diferentes discursos sobre a capoeira se constituem, influenciando, mais tarde, na transformação desta prática corporal. Ao invés de pretender equacionar o dilema em termos maniqueístas, isto é, « tradição » versus« invenção », nosso intuito é o de apontar esse descompasso como uma falsa questão, pois todo processo de construção e transformação da capoeira deu-se por meio de mitos, crenças, e discursos de origens diversos, simultaneamente populares e acadêmicos, em que olhares unilaterais tornam-se insuficientes.
4Em outras palavras, interessa-nos, aqui, problematizar as circunstâncias que envolveram o processo de enunciação desses discursos, sobretudo no que diz respeito à Capoeira Angola. Porquê uma determinada forma de capoeira, notadamente a Capoeira Angola, foi considerada “mais tradicional” que suas congêneres ? A quem, eventualmente, cada uma dessas versões pode interessar e porquê ? Como essas diferentes versões sobre a história da capoeira influenciam a sua conformação ?
5A memória, o passado e os fatos históricos são sempre o resultado de « invenções » (Hobsbawm & Ranger, 1983), quer sejam postulados por acadêmicos, militantes, populares ou qualquer outro grupo de interessados. Aliás, interesses, conscientes ou não, perpassam a construção e a reprodução de histórias sobre as capoeiras ou sobre quaisquer outras práticas. De acordo com Alun Munslow, « a forma com que escrevemos a história está tão aberta aos usos e desusos do poder quanto qualquer outra narrativa » (2009, p. 25). Desse modo, a suposta submissão de uma versão da história a critérios de prova e verificação não necessariamente a garante como uma representação mimética do que de fato aconteceu. Trata-se, quando muito, de dispositivos peculiares, manipulados por determinados grupos em situação privilegiada de poder discursivo (Briggs, 1996).
História, mito e verdade na capoeira angola
6Antes mesmo do advento do século XX a capoeira já se configurava como um expressivo elemento da cultura e da sociabilidade de diferentes grupos populares. Sua prática se manifestava em formas de brincadeiras e festejos de rua, embora seus principais registros nesse período encontrem-se, sobretudo, na literatura e documentação policial, onde se vê frequentemente associada ao uso de armas, em situação de repressão e vista, pelas elites, como algo nefasto, embora, algumas redes entre capoeiristas e políticos tenham sido articuladas.
7Em 1890, a capoeira é criminalizada e o século XX irrompe em um clima de conflito entre capoeiristas e polícia (Rego, 1968). É apenas a partir da década de 1930 que ela se configura como uma prática cultural de destaque, ganhando mais visibilidade positiva, graças ao movimento de valorização, em alguns casos, da cultura popular. Nesse contexto, a capoeira baiana, em particular, ganha notoriedade com a criação da Capoeira Regional e da Capoeira Angola, que, apesar de códigos distintos, ambas são associadas, entre outras coisas, a uma ideia de « folclore » e « esporte », simultaneamente.
8Acreditamos não ser necessário repetir aqui a história da criação dessas duas vertentes de capoeiras, mas apenas assinalar o fato de que a Capoeira Angola e a Regional terem sido contemporâneas, não sendo exatamente a segunda uma dissidência da primeira, como é corrente no discurso de senso comum. As duas vertentes são, portanto, manifestações contemporâneas que carregam em si um alto teor de inventividade de Mestre Pastinha, na Angola, e de Mestre Bimba, na Regional.
9Pires (2001) chama atenção para o fato de que, apesar de Mestre Pastinha, bem como o próprio Mestre Bimba concordarem a respeito do caráter tradicional da Capoeira Angola, não se encontram registros que denominassem esta prática de Capoeira Angola antes dos anos 1930. O autor coloca ainda que a denominação advém da necessidade de se contrapor aos outros modelos de capoeira esportivizada que vinham se desenvolvendo na Bahia naquele período. Assim, parece que a identidade da Capoeira Angola foi construída a partir de uma necessidade explícita de diferenciação da “Luta Regional Baiana”, que depois passou a ser chamada de Capoeira Regional. Tudo isso se deu em constante clima de conflito e disputa por espaço e legitimidade, que reverberam até os dias de hoje.
10Pires (2001) sugere, ainda, que a influência de intelectuais que elegeram a Capoeira Angola como a mais « pura » e « autêntica » tenha tido papel fundamental em sua formação discursiva, hipótese também defendida por Vassalo (2003), que acredita que a construção de um modelo de pureza da luta afro-brasileira parece consolidar-se a partir de apontamentos de Édison Carneiro (s/d), que divulgava em seus escritos a Capoeira Angola como sendo a mais tradicional. Vassalo (2003) até sugere que a veiculação da expressão Capoeira Angola tenha sido consolidada a partir de forte influência de Édison Carneiro.
11Mas teriam os protagonistas da Capoeira Angola, de forma passiva, permitido que esta prática fosse moldada e manipulada por essas influências externas ou, ao invés disso, teriam participado desse jogo de forma ativa ?
12É possível afirmar que tanto a Capoeira Angola quanto a Regional são frutos de um processo de modernização, sincretismo e urbanização. Ademais, é igualmente verdade que ambas as manifestações diferem substancialmente entre si. Mas o que existe ou existia na Capoeira Angola que fez com que Édison Carneiro e outros intelectuais da época, percebessem-na como uma prática “mais pura e autêntica” ? Não nos parece que Jorge Amado – que também desenvolveu concepções análogas às de Édison Carneiro – tivesse inventado histórias sobre a Capoeira Angola, como quem cria Capitães de Areia. Alias, analisando obras como essa, tão cheia de trejeitos e ideias retirados do universo baiano da Capoeira Angola, podemos facilmente postular que não foi apenas o discurso desses intelectuais que influenciou a capoeira, mas também o inverso, isto é, a capoeira também influenciou os seus discursos e modos de pensar. Afinal, a invenção de uma tradição só é possível quando articulada a um conjunto amplo e complexo de circunstâncias políticas, econômicas e sociais objetivas (Bourdieu, 2004).
13Se compreendermos a ideia de discurso como algo que constitui e ao mesmo tempo é constituído pela ideologia de um grupo ou de uma instituição e, ainda mais, se considerarmos o fato de que o corpo é um veículo discursivo, verificaremos que o capoeirista merece um lugar de centralidade na história de formação do discurso da capoeira. Desse modo, devemos nos perguntar, primeiramente, qual discurso se inscrevia no corpo do capoeirista da época e que foi interpretado por esses intelectuais – pois, como aponta Silva, o corpo é um « operador discursivo », algo que « problematiza e cria discursos » (1999, p. 25).
O caráter místico e coletivo da capoeira angola
14Num ambiente de disputa por espaço e reconhecimento, onde a Capoeira Regional ganhava maior destaque, a Capoeira Angola, já em clara oposição à primeira, rompia com sentidos e significados mobilizados pela capoeira entre os fins do século XIX e princípios do século XX, moralizando-se e afastando-se do ambiente da rua em favor de seu estabelecimento em escolas e grupos organizados, ao mesmo tempo em que assumia, por outro lado, maiores vínculos discursivos com uma ideia de passado africano.
15É discurso corrente que Mestre Pastinha foi o principal representante da Capoeira Angola. Entretanto, deve-se reconhecer também que ele não criou a Capoeira Angola da mesma forma que Bimba criou a Capoeira Regional, muito embora Seu Pastinha, como também era chamado, tenha instituído uma série de inovações para a sua organização. Conforme consta em depoimento do próprio Mestre Pastinha e também na biografia de Mestre Noronha, numa roda de capoeira da Gengibirra, o guarda civil Amorzinho, acompanhado de Livino Diogo, Totonho de Maré, Aberrê e Mestre Noronha, teria « entregue » a capoeira para Pastinha (Muricy, 1999 ; Coutinho, 1993). Esse coletivo de capoeiristas teria autorizado Pastinha a « tomar conta » da Capoeira Angola. Se aqui está posto que Pastinha teria a autoridade para organizar a Capoeira Angola e, com isso, não deixá-la sucumbir, estava também implícito que ele tinha um compromisso com a memória desses mestres.
16Em parte, este processo, que simbolizava a ideia de transmissão de uma herança coletiva, poderia explicar o motivo pelo qual o discurso da tradicionalidade recai sobre a Capoeira Angola, maximizado, depois, por artistas e intelectuais. Ou seja, a Capoeira Angola, já no seu formato moderno, se desenvolveu de maneira profundamente articulada a um caráter coletivo. A história da invenção da Capoeira Angola, portanto, não deve ser imputada a um único sujeito. O protagonismo e a colaboração ativa de outras pessoas no processo de construção do próprio discurso corporal da Capoeira Angola, para além da lendária persona de Mestre Pastinha, também evidencia este caráter coletivo. Mestre Cobrinha Verde, por exemplo, é uma referência na codificação do discurso corporal da Capoeira Angola.
17Nascido em Santo Amaro da Purificação em 1917, Rafael Alves França, conhecido como Cobrinha Verde, era primo de Besouro Mangangá1, com quem iniciou seu aprendizado na capoeiragem, relacionando-se, mais tarde, também com Siri de Mangue, Espinho Remoso, Canário Pardo, entre outros. Foi apelidado por Besouro devido a sua agilidade e destreza, além de ser conhecido por sua habilidade com a navalha. Fez parte do bando de cangaceiros de Horácio de Matos (figura que aparece em canções de capoeira e samba de roda) e coordenou o Centro Esportivo de Capoeira Angola Dois de Julho, por onde passaram capoeiristas que posteriormente se tornaram mestres (Abib, 2009).
18Cobrinha Verde jamais cobrou para ensinar capoeira, cumprindo promessa que fez a seu primo Besouro. Além disso, foi o que se pode chamar de mandingueiro nato. O conceito de mandinga não está somente ligado à ideia de astúcia, sedução e jogo de corpo. Mandinga é manha, malícia e também magia. Nas palavras do mestre : “Não era só a capoeira que me livrava dos meus inimigos. O bom capoeirista é mágico. Ele tem poder de aprender boas orações e usar um bom breve, porque a capoeira não livra a gente de bala”(Santos, 1991, p. 17).
19O percurso de Mestre Cobrinha Verde também revela a significativa influência do Recôncavo Baiano na formação da Capoeira Angola soteropolitana no que diz respeito ao misticismo e às histórias de valentia que aparecem explicitamente na capoeira do Recôncavo (Abib, 2008). Esse mestre teria sido o responsável por introduzir na Capoeira Angola o ato de tocar o chão repetidas vezes como que fazendo um feitiço, ou pedindo proteção, movimento que se tornou emblemático da ideia de « soltar a mandinga ». Esta ação seria depois difundida por Mestre João Grande, que teve contato com Cobrinha Verde.
20É interessante perceber aqui como uma concepção de mundo, no caso a relação com o sagrado e a religião, aparece no jogo da capoeira na forma de um discurso corporal, que, com o passar do tempo, se institui como um código caracterizador. A questão da « mandinga », não como um movimento, mas como um conceito de « vadiação »2 da Capoeira Angola, tornou-se emblemática nas descrições e análises dessa prática, sobretudo no intuito de diferenciá-la da Capoeira Regional. É muito provável que a ênfase posta no discurso da capoeira sobre a questão da « mandinga » tenha colaborado para que o gesto de um mandingueiro como Cobrinha Verde tenha se tornado um símbolo da ideia de « soltar a mandinga ». Mestre João Grande, também teria tido papel fundamental nesse processo, visto que ele, em sua prática, ressalta bastante a relação da capoeira com o candomblé enfatizando o gesto de tocar o chão repetidas vezes com as mãos em seu jogo e em seu método de ensino da capoeira.
21João Grande, referenciado por Rego (1968, p. 288) como quem « Deus mandou jogar », é discípulo de Mestre Pastinha e aparece no vídeo Mandinga em Manhattan, de Lázaro Faria (2006), fazendo e falando de suas mandingas em Nova Iorque, incensando seu espaço na Sexta Avenida, cuidando de seu altar e falando de orixás. Os mitos, fantasias e mandingas se tornam, assim, aspectos da identidade da Capoeira Angola. Apesar de sua suposta « irrealidade », estes são elementos constitutivos do universo dos adeptos e entusiastas dessa vertente.
22O mito, que já foi considerado por muitos como um subproduto da mente ignorante de povos menos desenvolvidos pode e deve ser entendido como um processo de reconhecimento da atuação do humano na sociedade. Ao invés de uma ingênua fantasia, trata-se, de maneira mais profunda, de uma das maneiras de o ser humano se relacionar consigo mesmo e com o mundo, conforme já apontou Cacciatore (1977). Mitos, em outras palavras, são « irrealidades » que criam status de verdade, à medida que são praticadas com um teor de fé e comoção.
23Na concepção de Pires (2001), a capoeira é uma tradição inventada porque ela tem fundamentos ideológicos e mantêm uma relação artificial com o passado histórico, que segundo o autor, geralmente é esquecido ou bastante mitificado. No entanto, parece-nos que a mitificação é um processo que caracteriza os movimentos das culturas populares no Brasil, sejam elas tradições antigas ou atuais. O que Pires (2001) denuncia como vínculo artificial da Capoeira Angola com o passado bem poderia sugerir, visto de outra perspectiva, a ideia de um vínculo orgânico com um passado mítico.
Candomblé e capoeira no congresso de estudos afro-brasileiros
24As décadas de 1930 e 1940 foram marcadas por debates que ampliaram os estudos acadêmicos que destacavam a participação do negro e da cultura africana na formação social brasileira. Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Roquette-Pinto, Édison Carneiro, Mário de Andrade e Luís Câmara Cascudo estão entre alguns dos protagonistas deste movimento. É nesse contexto político e acadêmico que acontecem o I e II Congresso Afro-Brasileiro (Santos, 2001).
25O I Congresso Afro-Brasileiro, realizado em 1934, em Recife, teve como organizador Gilberto Freyre. O II Congresso, realizado em 1937, em Salvador, foi encampado, principalmente, por Edison Carneiro, com o apoio de Aydamo Couto Ferraz e Reginaldo Guimarães.
26A segunda edição do referido Congresso teve um tom de resposta aos pernambucanos, sobretudo às concepções de Gilberto Freyre sobre a formação social do Brasil. O evento teve como particularidade o fato de atores da cultura afro-brasileira figurarem ao lado de estudiosos nacionais e estrangeiros, não simplesmente como objeto de discursos, mas também como produtores de discursos próprios (Santos, 2001). Foi esse o caso, por exemplo, de Eugênia Ana dos Santos, Mãe Aninha, do terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá e do capoeirista Samuel Querido de Deus, que teria participado juntamente com outros capoeiristas fazendo demonstrações das práticas culturais e participando de algumas discussões (Pires, 2002). Nota-se que esse Congresso ocorreu em 1937, quatro anos antes do retorno de Mestre Pastinha à capoeira e fundasse do Centro Esportivo de Capoeira Angola. A participação de Samuel Querido de Deus neste evento pode ser considerada como um momento emblemático do encontro de discursos de diferentes origens sobre a capoeira.
27Nesse encontro, via-se, de um lado, o pescador corpulento, Samuel Querido de Deus, tido como o melhor capoeirista da época, trazendo em seu corpo as marcas do « seu lugar » ; de outro lado, Edison Carneiro, etnólogo negro, com inclinação ao marxismo, temendo que a modernização condenasse ao ocaso as expressões da cultura popular.
28 Sobre esse encontro de discursos, é interessante observar que a formulação da ideia de uma capoeira « mais autêntica » é apresentada com o advérbio comparativo, que distingue a capoeira jogada por Samuel Querido de Deus da capoeira que já estava sendo ensinada na escola de Bimba, que, por sua vez, se vinculava a grupos com status mais altona hierarquia social, pois, como consta, Bimba teria inventado a Capoeira Regional para ser ensinada a « trabalhadores » e estudantes (Pires, 2001). A ideia de “trabalhador”, no caso de Samuel Querido de Deus, aparece associada às funções de trapicheiro, carroceiro, estivador e pescador. No segundo caso, no entanto, a mesma ideia aparece em clara oposição – e até contraposição – ao mundo da vagabundagem.
29Outro dado relevante é o fato de a capoeira jogada por Samuel Querido de Deus e seus camaradas ter entrado no II Congresso Afro-brasileiro junto a manifestações religiosas do candomblé. A presença explícita de utensílios, vocábulos, alimentos e deuses que remontavam a uma cosmovisão da África banto e iorubá nas práticas do candomblé ajudava a dar sustentação à ideia de uma diáspora africana no Brasil. Parece-nos que, nesse contexto, a capoeira e o candomblé são postos num mesmo « balaio », o que africaniza a capoeira e folcloriza a prática religiosa. Trata-se de um processo importante para a compreensão da maneira através da qual o discurso da tradicionalidade incidiu poderosamente sobre a Capoeira Angola.
30Candomblé e capoeira sempre estiveram próximos, sendo em alguns casos praticados pelos mesmos indivíduos, como foi o caso dos mestres Bimba, Caiçara e Canjiquinha. O próprio conceito de mandinga deriva diretamente do contexto do candomblé, designando, em princípio, feitiço, encantamento. No campo da capoeira, portanto, mandinga amalgamou-se com a ideia de malandragem, isto é, da prática que encanta o oponente com o uso deliberado da magia, ou com a lábia, astúcia e malandragem, envolvendo-o como que em um encantamento para assim surpreendê-lo.
31O candomblé, religião afro-brasileira de culto aos orixás e nkises, também é baseado no discurso de um vínculo orgânico com um passado africano – o que foi reafirmado, ideologicamente, na década de 1970, período de explícita reafricanização desse culto. Nesse contexto, em que a prática religiosa era considerada como um símbolo da relação com um passado africano, ao mesmo tempo em que o status de africanidade era reivindicado por alguns entusiastas da Capoeira Angola, elementos do candomblé parecem, então, ter migrado para a capoeira. A partir daí, componentes da Capoeira Angola puderam ser relacionados com mais facilidade ao candomblé, tal como a tríade de instrumentos do candomblé (os tambores rum, rumpi e lê), e os berimbaus (gunga, médio e viola), na capoeira. Também temos na Capoeira Angola a presença do agogô, instrumento utilizado nas cerimônias de culto aos orixás e nkises e que também aparece em manifestações que têm algum vínculo com a religião, como o samba de roda e o maracatu.
32Em síntese, embora tanto a Capoeira Angola como a Regional tenham sido influenciadas por um modelo esportivo em sua organização, é importante frisar que no caso específico da Capoeira Angola, elementos característicos do candomblé foram incorporados, direta e indiretamente, na sua ritualística.
O discurso do corpo e a gestualidade da capoeira
33Como se sabe, as proposições de Mestre Bimba causaram, desde o início, certo desconforto entre alguns capoeiristas da época, seja pelo intuito de alterar a prática da capoeira, seja por priorizar a burguesia como um público-alvo (Pires, 2001). Não por acaso, antes mesmo de a Capoeira Angola se organizar em barracões, já apareciam no cenário, adeptos que a defendiam num contraste direto com a Capoeira Regional. Alguns, inclusive, o fizerem nos ringues, como é o caso de Aberrê. Se, no início, as diferenças no modo de executá-las no jogo não eram muito profundas, como acredita Pires (2001), com o passar do tempo, porém, o modo de concebê-las parece ter influenciado substancialmente o modo de experimentá-las.
34A capoeira praticada por trabalhadores pobres, que se apresentou como genuína aos olhos de intelectuais que buscavam a “essência” do povo brasileiro, foi se afirmando, cada vez mais, no próprio discurso corporal dessa prática. Esse discurso do corpo, por sua vez, também buscava suas “raízes”. A ideia de raiz não aparece aqui apenas como metáfora da ancestralidade africana, como foi e é comum de ser utilizada no discurso dos agentes da cultura popular, mas também como uma metáfora da característica da movimentação do angoleiro, isto é, como algo que o firme ao chão para projetá-lo para cima.
35Afirmar que a Capoeira Angola prioriza os níveis baixo e médio em sua movimentação, não deve levar a compreensão precipitada e equivocada de que na Capoeira Angola não exista também jogo alto, rápido e acrobático, como nos mostram algumas tendências contemporâneas. No entanto, parece-nos que aquela capoeira jogada por estivadores, pescadores e outros trabalhadores pobres das décadas de 1920 e 1930, foi desenvolvida, a partir dos anos 1940, com o advento da escola e do barracão, graças à formulação de metodologias de ensino e treinamento que, permeadas pelo discurso da “primitividade” e das “raízes africanas”, foi se consolidando técnica e gestualmente por meio da tensão, da oposição e do equilíbrio. Sim, por que se angoleiro busca o chão, é igualmente verdade que a este ele não se entrega, seja fugindo da queda (rasteira) ou mostrando habilidade para transitar entre os níveis espaciais (baixo, médio e alto), inclusive para escapar dos golpes que venham de baixo para cima.
36O jogo da Capoeira Angola em sua relação com a « terra » criou a densidade do movimento do angoleiro, que é constituída na ação de empurrar e aderir ao chão. Por exemplo, para se defender de um golpe que venha de cima para baixo, o capoeirista vai ao chão numa negativa, em que o corpo fica totalmente paralelo ao chão, sustentado apenas pelo o apoio das mãos e pés. Para sair da negativa e entrar num ataque, de outro modo, o capoeirista empurra o chão desprendendo ou deslocando as raízes de suas mãos ou pés. Tal ação não depende apenas de força nos braços e nas pernas, mas do domínio do movimento das extremidades a partir do centro de gravidade do corpo.
37Estudos que se debruçam sobre o corpo no âmbito das artes cênicas, como é o caso da Antropologia Teatral (Barba & Savarese, 1999)3, apontam os princípios da tensão, da oposição e do equilíbrio como grandes chaves do processo de construção do corpo expressivo. Do ponto de vista da semiótica, todo e qualquer corpo ou objeto expressa alguma coisa em determinado nível. Aqui, mais que isso, a questão da expressividade é posta como algo que se constrói na relação corpo, espaço e cultura. Em outras palavras, trata-se do corpo transfigurando-se em formas e sendo abordado do ponto de vista estético.
38No caso da Capoeira Angola, diferente da ideia de eficiência, que por vezes caracteriza a gestualidade da Capoeira Regional, investe-se mais numa teatralidade, intimamente comprometida com uma dramaturgia do corpo, trazendo para seu vocabulário mímeses e padrões de movimentos presentes no samba de roda e no samba de caboclo4. Não é outro o motivo pelo qual Mestre Ananias dizia que a capoeira, o samba e o candomblé « se comia no mesmo prato ». É nesse contexto que a ginga e as « chamadas » ganham destaque no jogo de Angola.
39No entanto, não se pode incorrer no equívoco de entender a Capoeira Angola somente como uma dança, embora a agressividade no jogo seja, em geral, disciplinada pela rígida estrutura da roda, pela autoridade do mestre e pelo respeito aos princípios doutrinários de Pastinha. Mesmo assim, o nível de disputa em um jogo de Angola pode variar bastante : de um jogo com golpes apenas demonstrados, sem encostar ; passando pelos golpes que encostam com sutileza ; até chegar no jogo em que cabeçadas, rasteiras e chapas são dadas a valer. O risco e a « falsidade » aumentam a tensão do jogo, pois nunca se sabe quando um golpe pode ser solto a valer, mesmo que ele tenha começado no nível mínimo. Alias, ousaríamos dizer que um jogador habilidoso começa sempre o seu jogo na « manha », estudando o adversário para surpreendê-lo no momento oportuno, o que é chamado de “falsidade”, “malandragem” do jogo. A mandinga, que também se confunde com essa noção, está muito ligada, para muitos angoleiros, a um sentimento subjetivo e extremamente místico.
Considerações finais
40Mais que apenas aceitar o fato de que a Capoeira Angola é uma manifestação moderna e que surge com essa denominação apenas na década de 1930, talvez pudéssemos também trabalhar com a hipótese de que as identidades das Capoeiras tenham se constituídas num diálogo permanente entre discursos de diferentes origens, que se retroalimentavam reciprocamente, envolvendo muitos interessados. Afinal, o processo histórico de formação da capoeira, em geral, bem como a própria dinâmica de produção de conhecimento sobre ela, envolveu tão constantemente a presença de intelectuais, que esses personagens podem ser considerados como parte da grande roda da capoeira. Nesse sentido, acadêmicos contemporâneos fazem parte da capoeira, tanto quanto Edison Carneiro ou Jorge Amado já o fizeram outrora. Em momento algum a capoeira se manteve isolada de outras influências, quer fossem àquelas ligadas a artistas e eruditos, quer fossem àquelas ligadas a outras práticas do universo cosmológico popular, como o samba e o candomblé.
41A passagem da Capoeira Angola de um estado de decadência para um estado de progressiva autoconfiança, expressa na própria atitude atual do angoleiro, vista muitas vezes como presunçosa e arrogante, pode ter estimulado um interesse em « desmitificar » elementos da história da Capoeira Angola. O discurso da sua ancestralidade africana, nesse contexto, que operou como um agente importante no « empoderamento » da Capoeira Angola, bem como no de outras práticas afro-brasileiras, acabou se tornando um alvo cobiçado.
42Concepções academicistas de história, porém, mesmo acreditando que podem revelar a verdadeira verdade das coisas apelando ao tropo da ciência como critério derradeiro, « desmistificando », assim, ideias e concepções supostamente « falsas » e « enganosas », não podem simplesmente desprezar a importância do mito na cultura popular. « Invenção » ou « construção social da realidade » não se confunde com ficção ou falsidade. Tradições populares, mesmo que literalmente « inventadas », gozam de uma « legitimidade emocional profunda » entre seus adeptos, conforme destacou Benedict Anderson (2008). Nesse sentido, seria no mínimo intelectualmente petulante, se não flagrantemente etnocêntrico, tratar crenças históricas dos outros como meras concepções equivocadas ou mal informadas. Além disso, a plasticidade, maleabilidade e arbitrariedade no processo de invenção de tradições têm também seus limites. Redes sociais, estruturas socioeconômicas e arranjos institucionais condicionam decisivamente o que é possível do que não é possível de ser socialmente inventado (Laferté, 2008).
43No caso da capoeira, especificamente, deve-se considerar que sua história se construiu e se constrói também a partir da realidade vivida por capoeiristas, onde a realidade mítica ou imaginada interfere diretamente no processo de consolidação de um conjunto de saberes que hoje habitam e significam os corpos que gingam e as rodas que giram no Brasil e em diferentes lugares do mundo.
Bibliographie
ABIB, Pedro Rodolpho Jungers, « Os velhos mestres ensinam pegando na mão », Caderno Cedes, Campinas, vol. 26, n. 68, p. 86-98, jan./abr. 2006.
ABIB, Pedro Rodolpho Jungers, Memórias do Recôncavo : Besouro e outras capoeiras. Docdoma filmes, Brasil, 54min., 2008.
ABIB, Pedro Rodolpho Jungers (coord.), Mestres e Capoeiras Famosos da Bahia, Salvador, EDUFBA, 2009.
ANDERSON, Benedict, Comunidades imaginadas : reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo, São Paulo, Companhia das letras, 2008.
BARBA, Eugenio & SAVARESE, Nicola, A arte secreta do ator, Campinas, UNICAMP, 1999.
BOURDIEU, Pierre, « A identidade e a representação : elementos para uma reflexão crítica sobre a ideia de região », in, _______. O poder simbólico, 7. ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2004, p. 107-132.
BRIGGS, Charles L., « The politics of discursive authority in research on the “invention of tradition” », Cultural Anthropology, vol. 11, n. 4, p. 435-469, 1996.
CACCIATORE, Olga Gudolle, Dicionário de Cultos Afro-brasileiros, Rio de Janeiro, Forense Universitário, 1977.
CARNEIRO, Edison, Capoeira, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura / Funarte, s/d.
COUTINHO, Daniel, O ABC da capoeira Angola : os manuscritos de Noronha, Brasília, CIDOCA, 1993.
HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence, A invenção das tradições, 3 ed. São Paulo, Paz e Terra, 2002.
LAFERTÉ, Gilles, « Imagem social ou luta política e cultural pelo controle do mercado », Mana, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 2, p. 399-427, 2008.
MUNSLOW, Alun, Desconstruindo a historia, Petrópolis, Vozes, 2009.
MURICY, C., Viva Pastinha, Ministério da Cultura do Governo Brasileiro, 52 min., 1999.
PIRES,AntonioLiberac CardosoSimões,Movimentosdaculturaafro-brasileira :aformaçãohistóricadacapoeiracontemporânea1890 – 1950,TesedeDoutorado,Unicamp,2001.
PIRES, AntonioLiberac CardosoSimões,Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá : três personagens da capoeira bahian,. Tocantins, Fundação Universidade de Tocantins, 2002.
REGO, Waldeloir, Capoeira Angola : ensaio sócio :etnográfico, Salvador : Ed. Itapuã, 1968.
SANSONE, Lívio, « Da África ao afro : uso e abuso da África entre os intelectuais e na cultura popular brasileira durante o século XX », Afro-Ásia, Salvador, n. 27, p. 249-269, 2002.
SANTOS, Flavio Gonçalves dos, Os discursos afro-brasileiros face às ideologias raciais na Bahia – 1889/1937, Dissertação de Mestrado (PPGH/UFBA), 2001.
SANTOS, Marcelino, Capoeiras e mandingas : Cobrinha Verde, Salvador : Rasteira, 1991.
SILVA, Paulo Cunha e, O Lugar do Corpo – Elementos para uma Cartografia Fractal. Instituto Piaget, Lisboa, 1999.
SILVA, Renata de Lima, Corpo Limiar e Encruzilhadas : a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea, Tese de doutorado, Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP [s.n], 2010.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano, A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808 – 1850),Campinas, SP, Ed. Da Unicamp, 2002.
VASSALLO, Simone Pondé, « Capoeira e intelectuais : a invenção coletiva da capoeira autêntica », Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 32, 2003.
Filmografia :
FARIA, Lazaro, Mandinga em Manhatan, DocTV, Brasil, 2006.
Notes
1 Personagem lendário do Recôncavo Baiano que atualmente ocupa papel de destaque no imaginário da capoeira.
2 O termo vadiar é utilizado em diferentes manifestações da cultura popular brasileira, como, por exemplo, o samba de roda, o cavalo marinho e a capoeira. Diz respeito à maneira lúdica de se participar do evento.
3 Embora não constitua um campo científico, a Antropologia Teatral, um projeto artístico desenvolvido desde os anos 1972, por E. Barba, tem servido de referência nos processos de construção do corpo expressivo.
4 O samba de caboclo é um ritual ligado ao candomblé angola.