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Antropologia digital a partir do Sul Global Digital Anthropology from the Global South

Jair de Souza Ramos et Renan Alfenas de Mattos
mars 2023

DOI : https://dx.doi.org/10.56698/cultureskairos.1909

Index   

Index de mots-clés : anthropologie du numérique, Sud Global.
Index by keyword : digital anthropology, Global South.

Texte intégral   

1Os estudos sociológicos e antropológicos sobre o digital trazem à tona discussões caras às disciplinas que se reformulam a partir do contato com novas tecnologias de comunicação. As associações entre humanos e não-humanos em redes sociotécnicas que sempre existiram são evidenciadas e se tornam mais claras à medida em que os dispositivos inteligentes, smartphones e plataformas inundam o mundo globalizado. A partir dessa informatização (Zuboff, 2021), neologismo que busca significar a capacidade de dispositivos produzirem informação durante o trabalho automatizado, ações comunicacionais advindas das mídias sociais, dos sites de busca e dos históricos de navegação tornam-se commodities exploradas pelas Big Techs. Tudo isso, somado a coleções de dados provenientes de outras fontes, como movimentações financeiras, Internet das Coisas, câmeras de vigilância, etc., formam grandes conjuntos de dados chamados de Big Data.

2Se, por um lado, esses dados estão disponíveis às grandes corporações, por outro, estão disponíveis aos pesquisadores das humanidades para incorporações em suas pesquisas. Afinal, a datificação transforma ações sociais em dados online quantificados (Cukier ; Mayer-Schoenberger, 2013). Um ponto de inflexão é que, na pesquisa sobre o digital, o pesquisador também se utiliza desses dispositivos digitais, seja em buscas no Google ou em grandes bases acadêmicas, seja na investigação de ações comunicacionais a partir de plataformas, ou mesmo investigando as plataformas ou seus algoritmos e seus efeitos nessas ações.

3As infinitas possibilidades de investigação sobre as novas tecnologias de informação e comunicação, distantes do que existiam nos primórdios da sociologia e antropologia, quando a base dessas ciências foi criada, são marcadas por possibilidades e dificuldades.

4As humanidades digitais são inerentemente interdisciplinares, ou seja, precisam do diálogo com várias disciplinas como sociologia, antropologia, comunicação, computação etc. Partindo de um ponto de vista sociológico ou antropológico, é necessário que, durante o diálogo com essas outras áreas, não se perca de vista discussões sobre “estruturas culturais e sociais, relações e instituições sociais, questões de poder, conflito e controle, economia política, e assim por diante” (Selwyn, 2019).

5Ou seja, se queremos investigar os padrões de ação humana no mundo contemporâneo, precisamos ter em conta sua organização em redes, redes que são sociodigitais ; logo, é precário entender os padrões de comportamento humano sem entender a atividade das maquinas e sem utilizar a atividade das máquinas nesse trabalho de compreensão.

6As ações digitais são altamente formatadas, isto é, os dados gerados pela utilização das plataformas não são “neutros”, mas são reflexo de uma estrutura algorítmica e de configurações tecnológicas, que, tomando o exemplo dos botões de curtir ou compartilhar, geram efeitos estruturantes (Marres, 2017). Por isso, cabe aos pesquisadores do digital olhar de forma crítica para essas ações, tentando identificar as associações entre humanos e não-humanos presentes em cada caso.

7Nesse sentido, a tradição etnográfica de observar o desenrolar de ações e associações entre humanos tem sido adaptada para compreender essas novas configurações. De fato, esse campo de investigação e de interlocução tem sido construído progressivamente numa relação dialética entre, de um lado, temas e ferramentas caros à Antropologia e à Sociologia e, de outro, a busca por conceitos que possam dar conta da novidade representada por estes espaços sociotécnicos, constituídos por ações e associações que articulam humanos e objetos digitais.

8Ao longo da história da Antropologia, grande parte daquilo que se chama etnografia tem se alimentado da observação de espaços periféricos, em especial no chamado Sul Global, designação que abarca sociedades que foram alvo de processos de colonização dirigidos a partir das sociedades do atlântico norte. Essas etnografias sofreram uma inflexão importante quando, a partir das últimas décadas do século passado, foram alvo de uma crítica política e epistemológica que impôs a necessidade de incluir, no cerne da observação e reflexão etnográficas, as condições de reprodução da relação de dominação dos países do Norte sobre os do Sul. Uma antropologia do digital não deve estar alheia a essa inflexão. Essa perspectiva oferece uma contribuição importante à compreensão de espaços e práticas sociais advindos da expansão da Internet, na medida em que nos convida a examinar o modo como a difusão das plataformas digitais, a partir de um pequeno número de corporações que se originam dos EUA, se inscreve na reprodução continuamente renovada das relações de dominação entre Norte e Sul. Nesse sentido, este dossiê pretende reunir artigos que examinam o modo como interesses e valores que organizam a moldura das plataformas digitais desde o Norte são articulados a práticas sócio-digitais em países do Sul Global.

9Estes artigos têm, assim, um campo de observação definido : os países do Sul. Mas o objetivo fundamental não é tomar essa empiria como exemplo da operação geral das plataformas digitais, escapando, assim, a um dos equívocos frequentes, na antropologia e na sociologia do digital, que é, partindo das relações de dominação entre centro e periferia, adotam a prática de tomar processos investigados à nível local como exemplos de lógicas constituídas por processos gerais. Ora, não há dúvida de que tanto as molduras de ação, interação e subjetivação, quanto a modelagem dos algoritmos nas plataformas digitais são constituídas a partir dos países centrais, especialmente dos Estados Unidos. Contudo, trata-se, nos artigos aqui reunidos, de compreender processos sociais que articulam essas dinâmicas transnacionais com dinâmicas locais, examinando relações sociais complexas que tem sua própria historicidade e investigando o modo como as molduras transnacionais das plataformas e tecnologias digitais negociam sua presença em meio a práticas locais.

10Veremos, por exemplo, que o exame da circulação de imagens sexuais digitais – esses objetos digitais nomeados desde os EUA como nudes e alvo de disputas morais e legais a partir da categoria norte-americana revenge porn - vai demandar uma investigação etnográfica das conversões desses objetos digitais e transformações dos agentes envolvidos à medida em que eles circulam em diferentes redes locais. Nesse sentido, as categorias e significados que vem do centro operam, muitas vezes como obstáculo epistemológico, impedindo de operar conceitos que restituam a complexidade dessas empirias específicas. Veremos também, como os dispositivos tecnológicos desenvolvidos no Norte global são disputados pelos diferentes atores na sociedade para produzir, ou reforçar, relações de poder e exploração locais, se articulando mecanismos de vigilância que as plataformas oferecem com redes paramilitares de controle territorial. No sentido inverso, veremos também como as tecnologias difundidas por essas plataformas são reapropriadas por grupos minoritários e periféricos em suas lutas políticas locais.

11Em “As mudanças no campo digital”, Laura Graziela Gomes, pesquisadora e Professora Titular da Universidade Federal Fluminense, é entrevistada sobre sua trajetória de pesquisa. Como pioneira nos estudos sobre ambientes digitais imersivos no Brasil e com larga experiência nos estudos antropológicos do consumo, das telenovelas e sobre os modos de se fazer etnografia online, Laura Graziela apresenta importantes reflexões sobre continuidades e descontinuidades entre as mídias, sobre a influência de autores do Norte Global em suas obras e sobre as mudanças no campo do digital ao longo dos anos. Por último, a entrevistada nos oferece reflexões pioneiras sobre o tema ainda incipiente mas cada vez mais presente dos metaversos.

12Na outra entrevista que compõe este dossiê - “A digitalização do desejo” -, o pesquisador e Professor Titular da UNIFESP, Richard Miskolci nos ajuda a compreender as transformações do campo de pesquisas sobre o Digital a partir de sua própria trajetória de pesquisa. Como especialista no campo de gênero e sexualidade e no da sociologia digital, termo que ajudou a popularizar no Brasil com suas obras, Miskolci apresenta importantes reflexões sobre possibilidades e limites do uso de categorias teóricas do Norte na compreensão de práticas sociais no Sul.

13O artigo “Décoloniser l’œil de Dieu - méthodologies féministes pour la construction de cartes sur la violence de genre en Amérique Latine”, de Larissa Pelúcio e Fernanda Pasian, propõe uma abordagem inovadora de análise : mapas criados utilizando os recursos do Google Maps com informações obtidas do software e por meio da pesquisa de ativistas contra a violência de gênero. As autoras analisam o processo de artesania dos mapas, olhando para quatro deles criados por coletivos de mulheres diferentes, um de cada país da América Latina. Além da pesquisa com motores de busca e monitoramento das plataformas, Pelúcio e Pasian descrevem as funcionalidades de quem navegou pelos mapas, destacando o entrelaçamento das funcionalidades técnicas com o trabalho cartográfico feminista dos coletivos, culminando num importante instrumento de visibilização de corpos latino-americanos excluídos. A análise das apropriações “desobedientes” realizadas por essas mulheres é utilizada para a crítica dos dados oficiais e para mostrar como uma tecnologia de vigilância pode ser utilizada de forma subversiva e de modo positivo.

14No artigo “What’s in a name ? Why ‘revenge porn’ doesn’t work as a term in Brazil”, Beatriz Accioly Lins discute a importância da nomeação no caso de disseminação sem consentimento de imagens digitais eróticas de mulheres, com o argumento de que muitas vezes as vítimas não se identificam com o termo revenge porn (pornografia de vingança). A autora explica o surgimento do termo, destacando o relacionamento das novas tecnologias digitais com normas sexuais e de gênero moralistas e antiquadas, e das limitações que o nome pode vir a causar, assumindo que há toda uma multiplicidade de casos de vazamentos de nudez online que não encontram legitimidade nele. Isso se daria tanto pela não identificação de vingança no motivo do vazamento, quanto pela repulsa moral à pornografia. Beatriz Accioly Lins termina por apresentar importantes reflexões sobre como a Internet pode ser utilizada, de modo a provocar tanto a afirmação quanto a subversão e questionamento de convenções e normas sociais

15Em “Military, militias and unicorns : platform authoritarianism in Brazil”, Cardoso e Desgranges, a partir de discussões do campo de “Ciência, Tecnologia e Sociedade”, buscam identificar como apropriações de tecnologias do Norte Global acabam por subverter os usos originais pensados pelos seus criadores, além de produzir ou reforçar relações de poder e exploração características do Sul Global. Através da descrição das conexões entre indivíduos, instituições e dispositivos em dois diferentes casos etnográficos, relativos ao funcionamento do Centro Integrado de Comando e Controle do Rio de Janeiro (CICC), e da plataforma Ifood, os autores questionam o ideário de eficiência que acompanha as tecnologias. Além disso, apontam para como o processo de milicianização (militianization), presente no Rio de Janeiro, acaba por influenciar as apropriações de tecnologias externas, já que os dois casos analisados são perpassados por autoritarismo ou violência e atividades ilícitas.

16No artigo “Postales etnográficas de las Redes Inalámbricas Libres con Internet Comunitaria”, Daniel Daza nos apresenta as redes argentinas de Internet comunitária livre. A partir da realização de etnografia com os grupos que administravam essas estruturas de Internet, Daza esmiúça essas redes de atores humanos e não-humanos. O autor descreve como essas redes sociotécnicas estavam impregnadas de valores como os da democratização da comunicação, de apropriação em sentido amplo da tecnologia e de comunidade, bem como de que modo os cientistas de computação responsáveis pela estruturação dos sistemas de Internet comunitária enxergavam todo o movimento. Neste trabalho que reflete sobre novas formas de se pensar a Internet como a conhecemos, opaca e comercial, Daza evidencia o poder das redes locais e da ideia de compartilhar livremente o conhecimento.

Bibliographie   

CUKIER, Kenneth ; MAYER-SCHOENBERGER, Viktor, "The rise of big data : How it’s changing the way we think about the world", Foreign Affairs, v. 92, n. 3, pp. 28-40, 2013.

MARRES, Noortje, Digital sociology : The reinvention of social research. Cambrodge : Polity, 2017.

ROGERS, Richard, "O fim do virtual : os métodos digitais", Lumina, v. 10, n. 3, 2016, pp. 1-34.

ROGERS, Richard, Digital methods, Cambridge : The MIT Press, 2013.

SELWYN, Neil, What is digital sociology ? Cambridge : Polity Press, 2019.

VAN DIJCK, José, "Confiamos nos dados ? As implicações da datificação para o monitoramento social", Matrizes, v. 11, n. 1, 2017, pp. 39-59.

ZUBOFF, Shoshana, A era do capitalismo de vigilância, Rio de Janeiro : Editora Intrínseca, 2021.

Citation   

Jair de Souza Ramos et Renan Alfenas de Mattos, «Antropologia digital a partir do Sul Global », Cultures-Kairós [En ligne], mis à  jour le : 11/04/2023, URL : https://revues.mshparisnord.fr:443/cultureskairos/index.php?id=1909.

Auteur   

Quelques mots à propos de :  Jair de Souza Ramos

Jair de Souza Ramos est docteur en Anthropologie Sociale de l’Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2002) et a réalisé un Post-Doctorat à l’École Normale Supérieure, section Sciences Sociales, à Paris (2006). Il est actuellement professeur au Département de Sociologie et au Programme de Post-Graduation en Sociologie de l’Universidade Federal Fluminense (UFF). Il est Vice-Coordinateur du NEMO/UFF (Laboratório de Estudos da Modernidade) et développe des recherches en Anthropologie et politiques publiques, avec un intérêt particulier pour l’immigration, l’anthropologie de l’État, la pensée sociale brésilienne, les politiques publiques, le racisme, les relations de genre et les nouvelles technologies.

Quelques mots à propos de :  Renan Alfenas de Mattos

Renan Alfenas de Mattos est doctorant en sociologie à l’Universidade Federal Fluminense, avec une période de recherche à l’Instituto de Comunicação da NOVA (ICNOVA) à Lisbonne, au Portugal. Il est actuellement chercheur au sein du groupe Discurso, Redes Sociais e Identidades Sócio-Políticas - DISCURSO, affilié au CPDA de l’Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Ses recherches portent sur la politique de l’Internet et sur l’Internet en politique, et il s’intéresse à des thèmes tels que l’analyse politique du discours, les mouvements sociaux, l’action et la mobilisation de la droite, les médias sociaux, ainsi que les méthodes digitales d’extraction, d’analyse et de visualisation de données.